Por várias décadas, havia um entendimento de que o grande público era atraído em massa ao cinema pela promessa de uma experiência única. Era a fórmula aperfeiçoada por Steven Spielberg e George Lucas após o declínio do cinema autoral norte-americano no final dos anos 70, quando o marketing em torno dos filmes era dedicado a provar às audiências que, ao entrar naquela sala escura, elas seriam transportadas para uma situação extraordinária.
Na era do high concept, a atração de um filme era medida pela capacidade de sintetizar sua premissa em uma única frase de impacto: um tubarão aterrorizando uma pequena cidade costeira (Tubarão, 1975); uma nave de operários encontrando o ovo de um predador alienígena (Alien, O Oitavo Passageiro, 1979); um garoto que acorda na pele de um adulto (Quero Ser Grande, 1988).
Sutilezas narrativas e desenvolvimento de personagens eram, por vezes, deixadas de lado em favor do espetáculo, encontrando um lar mais confortável no cinema independente e no circuito arthouse. Mas o motor hollywoodiano ainda era movido pela necessidade de intrigar. Talvez mais importante, como os próprios estúdios ainda não haviam descoberto uma fórmula totalmente sólida para o sucesso – dependendo de artistas visionários e de suas ideias – ainda havia espaço para que visões autorais conseguissem ser negociadas, atravessando o sistema de produção até chegar sob alguma forma às telas.
Em cartaz nos cinemas, Passageiros (Passengers, 2016 – clique para ler a crítica completa) passou quase 10 anos na “Lista Negra” de Hollywood, uma listagem anual dos roteiros mais atraentes que ainda não foram produzidos. O filme tem dois dos atores mais famosos atualmente e um conceito que parece saído diretamente daquela era de filmes-evento: um casal de estranhos em hibernação numa nave espacial destinada a um novo planeta acorda 90 anos mais cedo do que o planejado.
Com uma bilheteria abaixo das expectativas e uma recepção dura – apenas 31% de aprovação da crítica no Rotten Tomatoes – Passageiros já pode ser considerado um fracasso para a Columbia Pictures.
Por contraste, Rogue One: Uma História Star Wars (Rogue One: A Star Wars Story, 2016 – clique para ler a crítica completa) conquistou uma das 10 maiores bilheterias de 2016 (e segue subindo no início de 2017) e 85% de aprovação no mesmo site. É, ao contrário de Passageiros, uma história derivada de uma franquia pré-estabelecida, que funciona como uma ponte entre as pré-continuações e a trilogia clássica de Star Wars.
Boa parte da negatividade em torno da trama de Passageiros (alerta de spoiler) se deve a uma decisão no primeiro ato que foi escondida por sua campanha de divulgação. Tendo passado mais de um ano sozinho e sem esperanças de conseguir voltar a hibernar, acometido por uma depressão insuportável, o mecânico Jim Preston (Chris Pratt) decide acordar uma das passageiras, a escritora Aurora Lane (Jennifer Lawrence), por quem ele se apaixonou ao ler seus livros e assistir suas entrevistas na biblioteca virtual da nave.
É uma decisão moralmente repreensível: ao acordar Aurora para acabar com sua própria solidão, Jim essencialmente a condena a morrer junto com ele na espaçonave. Pior, ao não contar-lhe a verdade e fingir que tudo foi um acidente, o mecânico acaba manipulando-a a se apaixonar por ele.
Ao contrário das reações exageradas que andei lendo, acredito que o filme reconhece o lamaçal ético no centro de sua premissa. Jim se sente em conflito profundo com suas ações, compreendendo que vai destruir outra vida por uma motivação egoísta, embora humanamente irresistível. A decisão é descrita como “assassinato” em certo ponto. Algumas críticas se referem ao filme como uma ode à Síndrome de Estocolmo, sugerindo que Jim cometeu uma espécie de sequestro.
Mas não é sequestro. Nem assassinato. É uma situação completamente nova que só é permitida pela ambientação futurista do filme, um crime sem nome que traz uma série de questões morais a serem debatidas. O que é precisamente o que a boa ficção científica vem fazendo há um bom tempo: levantando discussões instigantes a partir de cenários especulativos.
Por outro lado, o que, exatamente, Rogue One traz para a mesa? A Disney juntou um diretor promissor e atores talentosos com a promessa de um Star Wars diferente, que exploraria outro lado de seu universo fictício em uma história autocontida com novos personagens. Mas no fim das contas, Rogue One é apenas mais do mesmo: ainda que sem o letreiro inicial e as transições tradicionais da franquia, o filme segue toda a estrutura dos Star Wars clássicos, da formação de seu grupo improvisado de heróis rebeldes até a épica batalha final envolvendo combatentes na terra e no ar. O que poderia ter sido um heist movie no espaço acabou como o episódio 3.5 da saga, com personagens e interações tão superficiais que mesmo um final trágico se mostrou incapaz de gerar alguma reação emocional.
Mas, no geral, Rogue One não é um filme ruim, e é isso que importa. Há algum tempo, a sensação de experimentar um evento no cinema foi substituída por outra necessidade: familiaridade. Sequências costumavam ser vistas com maus olhos – quem pagaria para ver a mesma história duas vezes? Hoje elas são o motor da indústria, estimuladas por um sentimento geral de nostalgia e retorno aos prazeres da infância.
Hollywood vive uma era de pós-escassez de propriedades intelectuais, com décadas de universos fictícios e franquias prontas para serem repaginadas ad infinitum. Isso deslocou o equilíbrio entre controle artístico e comercial a favor dos estúdios, que precisam de grandes nomes mais por seu prestígio e técnica do que por suas ideias e conceitos. E com as adaptações da Marvel e continuações de Star Wars, a Disney aperfeiçoou a arte de transformar o familiar em assistível.
Com algumas exceções ocasionais (Gravidade, os filmes de Christopher Nolan), a era de filmes-evento hollywoodianos parecer ter dado lugar aos reboots. O que não é de todo ruim. Outros países têm ocupado esse nicho e atraído atenção internacional para seus talentos, e a Coreia do Sul em particular tem produzido nos últimos anos uma série de grandes blockbusters conceituais de médio orçamento.
Ainda assim, a disparidade na recepção de Passageiros e Rogue One é curiosa. O primeiro não chega a ser um grande filme: seu terceiro ato joga fora toda a complexidade de seu dilema central, evitando um caminho mais naturalmente sombrio em favor de uma reviravolta que artificialmente absolve seu protagonista de suas ações. Essa história deveria ser uma tragédia, não um romance. E nesse ponto consigo entender as críticas ao filme.
Mas ainda prefiro Passageiros e sua tentativa de fazer algo diferente do que o poço de familiaridade de Rogue One. Melhor alçar grandes voos e queimar a caminho do trajeto final do que manter uma mesma distância inofensiva do solo – se não na vida real, ao menos na arte.
Talvez precisemos de um pouco mais de intolerância com o passável e o seguro, e um pouco mais de boa vontade com o arriscado. Especialmente em um ambiente estéril como o dos blockbusters hollywoodianos, parafraseando Anton Ego em Ratatouille (2007), “o novo precisa de amigos”. Não é essa a maior função da crítica?