Taxi Driver (1976) de Martin Scorsese
Não há nenhuma dúvida que Taxi Driver (1976) é um dos melhores filmes do aclamado diretor Martin Scorsese. Nem há dúvidas que se trata de uma das maiores atuações do eterno Robert De Niro. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, o filme sempre figura em todas as listas sobre as mais importantes obras do Cinema. Mas revendo o filme, me trouxe reflexões extremamente cruciais para pensar a formação do sujeito político em nossa atualidade. Lembrando que o filme é uma obra dos anos 1970 e, até hoje, atravessou o tempo como uma carta que nos alertou o processo de formação de homem que podemos nomear como psicopata político.
Travis Bickle (De Niro) é um taxista em Nova York, veterano da Guerra do Vietnã que problematiza as mazelas que estão ao seu redor no mundo social a quem ele cobra caronas. Prostitutas, gângsteres, cafetões, políticos, personagens que figuram e representam a corrupção do mundo ao olhar dele. Em certo momento, Travis sente um vazio em que ele tenta preencher de forma ingênua buscando um par romântico. Travis se compreende como um homem honrado que percebe todas as mazelas que os homens do mundo não conseguem resolver. Tanto que se aproxima e se apaixona por uma linda mulher (Cybill Shepherd), assessora de um candidato em campanha a presidência, um democrata que se posiciona como a voz do povo.
Essa ingenuidade de Travis mostra, na verdade, um homem que tem prazeres tortuosos e que não se encaixam nas moralidades exigidas pela sociedade dita civilizada. Então desconectado a tudo isso e seguro de seus próprios valores que se estruturam no racismo, na violência e na vontade de ser o homem que o mundo precisa para “limpar as ruas de toda essa corja”, Travis passa a se construir exatamente como o oposto moral de toda a hipocrisia que ele entende haver no tal mundo civilizado. Vemos assim a emergência de um psicopata como herói.
Tudo isso parece muito próximo do que vivenciamos hoje, não é?
Mas isso se trata de uma construção de um sujeito que em seu processo de formação teve como fundamento a violência e a marginalização, tendo quase nenhuma oportunidade formativa para interiorizar as disciplinas de uma sociedade marginalizante e seletiva. O primeiro ponto é entender como o sujeito percebe a si mesmo. Confiante quanto a noção de si, Travis não é questionado, ele questiona. Travis, sempre que tenta se impor no mundo dos civilizados, é problematizado e até estigmatizado. Pouco afeito a cultura, vai ao cinema única e exclusivamente para curar suas angústias, e o cinema que ele vai, veja só, é o cinema erótico e pornô, onde a violação do corpo feminino e a imposição do macho é uma naturalidade a qual Travis consegue ser afetado e relaxar. Este vazio de um corpo e uma mente forjada pela violência são o terreno perfeito para aflorar a pior espécie de vegetação possível. Um homem formado a partir da guerra, que tem noções de moralidade corrompidas, que não se liga a nenhum processo cultural que combata a própria violência que não permite que nenhuma força possa abalar suas crenças são as características subjetivas desse personagem, que não está longe das personagens reais do nosso mundo contemporâneo.
Por causa das grandes crises econômicas e principalmente as contestações político-culturais que os jovens dos anos 1960 empreenderam, podemos perceber que as sociedades ocidentais dos anos 1970 passaram por uma grande transformação, como apontaram Michel Foucault, Gilles Deleuze, Derrida. Segundo eles, desde o começo do século XX houve uma transição de tecnologias de governo de caráter disciplinar para a tecnologia de controles como formas de gestão dos povos que se radicalizaram nessas épocas – e que foi base fundamental para a ascensão do neoliberalismo, como apontam os filósofos Pierre Dardot e Christian Laval. Dava-se a impressão de liberdade para que sob o controle se aplicasse a disciplina e assim aproveitar ao máximo aqueles engajados e exercer as forças da disciplina e da punição àqueles que não seguissem suas regras e positivações.
O problema nisso tudo é que há sempre brechas que possibilitam o surgimento de elementos que constituem formas de subjetivações diversas, resistentes aos sistemas para se encaixar a ele ou para tentar mudá-lo. No caso de Travis, percebe-se que ele é um personagem que sente falta do reconhecimento, logo, ele busca outras formas – violentas no caso – para agir e ser aquilo que ele considera “importante”. Sob suas estruturas violentas, ele emerge como um psicopata aos nossos olhos, do público que assiste, uma vez que a direção impecável de Scorsese não se esquiva da responsabilidade de posicionar-se politicamente, mas aos olhos das pessoas que o circulam, ele se faz como herói. Assim pergunto: e para os Travis de nossa realidade, nosso olhar é das pessoas que o viram como um herói que salvou uma jovem de um esquema de prostituição ou é o olhar de quem entende o terreno pantanoso ao qual fez emergir essa personalidade que não tem outra linguagem a não ser o da violência?