Baseada em fatos reais, a trama fala sobre a criação da Orquestra Sinfônica Heliópolis, em São Paulo. Protagonizado por Lázaro Ramos, por atores jovens e outros alunos da própria orquestra, o drama está em cartaz nos cinemas, e em entrevista exclusiva, Sérgio Machado fala sobre o projeto, sobre suas turmas de cinema em Fortaleza e outros projetos.
CLUBE CINEMA: Como o projeto do filme “Tudo que Aprendemos Juntos” chegou até você?
Sérgio Machado: Os irmãos Caio e Fabiano Gullane me apresentaram a peça Acorda Brasil e fiquei um tempo em dúvida se deveria ou não aceitar o projeto. Para dirigir um filme sinto necessidade de que a história tenha algo relacionado a minha experiência e a com o desejo de comunicar algo fundamental e para o público.
Sou filho de músicos e passei a infância em torno de uma orquestra. Meu pai tocava trompa e era pianista, e minha mãe era fagotista na Sinfônica da Universidade da Bahia. Eles eram estudantes, por isso cresci brincando entre instrumentos e ouvindo música clássica. Cheguei a estudar piano e violino, mas não levei adiante graças a minha absoluta falta de talento.
O filme é, de certa forma, uma homenagem aos meus pais e trouxe de volta lembranças que estavam perdidas. É também um projeto pessoal porque me sinto próximo do dilema do protagonista – um violinista que tem uma crise nervosa e se defronta com a possibilidade de não fazer mais aquilo para qual se preparou durante a vida inteira.
Consegui avançar no roteiro no instante em que me dei conta do quanto de Laerte (o personagem interpretado por Lázaro Ramos) havia em mim. Decidi ser diretor de cinema na infância e nunca cogitei fazer nada diferente. O medo do protagonista é também meu medo de um dia, por algum motivo, não conseguir mais filmar.
CLUBE: Qual a importância social do filme? É uma crítica ou uma mensagem de esperança?
Sérgio: Antes de mais nada é uma história que me interessava contar. O objetivo principal sempre foi emocionar os espectadores e não fiz o filme com a pretensão de mudar o país ou as pessoas. Trata-se de um filme grande com cenas divertidas e com bastante ação.
O filme tem uma mensagem de esperança porque fala sobre a luz no fim do túnel. A violência e a exclusão social são questões importantes no drama brasileiro. Filmes como Cidade de Deus (2000), Carandiru (2003) e Tropa de Elite (2007) exibiram nossa ferida para o mundo. Quando fui convidado para dirigir esse filme tive a sensação de que era importante falar também das pessoas que estão buscando caminhos para resolver nossos problemas.
O Brasil está longe de encontrar a solução para seus dilemas, mas nos últimos anos têm surgido iniciativas que indicam que a única forma de lidar com a violência e a desigualdade é educando e facilitando o acesso à cultura. Estamos no meio dessa crise que parece não ter fim, é difícil falar de esperança num momento desses, mas me parece importante.
A descoberta constante de casos de corrupção alimentou a volta de um perigoso pensamento de extrema direita. Os mais preconceituosos ganharam voz e perderam a vergonha de se expressar. Tenho assistido com tristeza, tanto na grande imprensa quanto nas redes sociais, a proliferação de um discurso rancoroso e retrógrado.
Outro dia estava conversando sobre isso com Paulo Linhares – diretor do Dragão do Mar – ele estava falando que, enquanto a pessoa de mais prestigio em uma comunidade for aquela que carregar uma arma, não mudaremos de fato o país. Eu torço para que esse filme, que fala de solidariedade e de aprender a escutar o outro, de algum modo contribua para um debate mais construtivo sobre os destinos do país.
CLUBE: Como foi trabalhar no mesmo set com atores profissionais, não-atores, crianças e músicos na produção?
Sérgio: Meu primeiro trabalho no cinema foi fazer o casting de Central do Brasil (1998) de Walter Salles. Naquele filme trabalhamos com uma mistura de atores consagrados, atores de teatro e atores não profissionais. Desde então, tenho repetido em meus filmes essa mescla.
No filme, temos interpretes experientes como Lázaro Ramos e Sandra Corvelone (ganhadora da Palma de Ouro por Linha de Passe, 2008), atores em início de carreira como Kaíque de Jesus e moradores da periferia como todos os outros jovens que fizeram parte da orquestra. O filme também conta com participações especiais dos rappers Criolo e Rappin Hood e da maestrina Marin Alsop, da Osesp.
Junto com Fátima Toledo ensaiamos durante bastante tempo. Preparamos o filme de maneira cuidadosa para deixar espaços para os atores improvisarem e preencherem o filme com suas próprias subjetividades.
Lembro-me especialmente de quando terminamos de filmar as aulas, antes de irem embora, eles convocaram Lázaro para uma conversa e o intimaram a não deixar a bola cair na ausência deles. Assisti a essa pequena reunião sem que eles percebessem a minha presença. Fiquei impressionado com a ousadia da moçada e com a humildade de Lázaro, que os escutou sem nenhuma ponta de condescendência. Eram colegas, dialogando de igual para igual.
CLUBE: Você é mais (re)conhecido como roteirista do que como diretor. Qual a grande diferença de escrever e dirigir?
Sérgio: Discordo um pouco disso, me sinto mais à vontade (e mais reconhecido) como diretor. Comecei a desenvolver roteiros porque queria dirigir meus filmes e não havia quem os escrevesse. Depois colaborei com roteiros de amigos, mas não me sinto muito à vontade escrevendo para os outros. Depois de algum tempo passei a tomar gosto pelas duas funções. O roteiro é uma experiência mais solitária, para escrever é preciso disciplina, introspecção e perseverança. Já na direção é fundamental tomar decisões rápidas, ter energia e liderança.
Se tivesse que escolher entre os dois sem dúvida ficaria com a direção. Existem poucos lugares onde me sinto à vontade num set. Adoro trabalhar com a equipe e elenco e sinto falta quando estou longe de toda a adrenalina que envolve o processo de filmagem.
CLUBE: Você tem uma grande parceria com o cearense Karim Aïnouz. Qual seu projeto mais pessoal com ele?
Sérgio: Acredito que a melhor maneira de se fazer filmes é rodeado de amigos. Nos momentos em que o cinema de fato encontrou novos rumos – como na Nouvelle Vague, Cinema Novo, Neorrealismo Italiano – os cineastas trabalharam muito próximos uns dos outros.
A parceria com Karim transcende os filmes, é uma espécie de projeto de vida. Já se vão quase 20 anos que a gente se conhece, fomos apresentados pelo Walter Salles, que intuiu que poderíamos fazer uma bela dupla. Começamos juntos – Karim com o Madame Satã (2002), eu com o Cidade Baixa (2005) e Marcelo Gomes (que também faz parte desse triângulo cinematográfico-amoroso) com Cinema, Aspirinas e Urubus (2005). Trabalhamos uns no roteiro dos outros. Foi um período riquíssimo para todos nós. Eu e Karim produzimos nossos primeiros longas na VideoFilmes, onde discutíamos com diretores (mais) experientes como Walter e João Moreira Salles, Eduardo Coutinho, Nelson Pereira e Daniela Thomas.
Há dos anos voltei a trabalhar com Karim e Marcelo no Porto Iracema das Artes, em Fortaleza. A cada mês trabalhamos por uma semana com diretores cearenses. Esse reencontro tem oxigenado minhas ideias. Acredito que o Porto Iracema é um dos espaços mais interessantes de discussão do audiovisual do país.
CLUBE: Você participa ativamente de turmas de cinema em Fortaleza. Como analisa a cadeia produtiva do cinema o Ceará? E as produções locais, destaca alguma ou mais de uma?
Sérgio: Acho o panorama do cinema cearense bastante instigante, existe desejo de cinema e uma vontade grande de experimentar. Eu, Marcelo e Karim estamos tentando contribuir para um aprofundamento do estudo da dramaturgia no Porto Iracema das Artes. A maior dificuldade que encontramos é que parte dos novos diretores tem um certo medo de narrar, como se contar bem uma história inibisse a originalidade de um filme. Acho que – se esses projetos seguirem adiante – é bastante possível que, em alguns anos, o Ceará ocupe o lugar de vanguarda que hoje Pernambuco possui na produção cinematográfica brasileira.
Acredito também que é importante que não se faça um só tipo de cinema. O Ceará recentemente produziu um dos maiores fenômenos de comunicação de massa fora do eixo Rio São Paulo – que foi o Cine Holliúdy (2013), tem obviamente o Karim (Praia do Futuro, 2014) – que é respeitado no mundo inteiro – há também o pessoal do Alumbramento, que tem uma produção ousada em contínua. Conheci muita gente nova interessante, talento não falta, mas prefiro não falar nomes pra não esquecer ninguém.
CLUBE: Quais são seus próximos projetos?
Sérgio: Estou terminando a montagem do documentário A Luta do Século – sobre Luciano Todo Duro e Reginaldo Holyfield, dois pugilistas que colocaram a Bahia e Pernambuco em guerra nos anos 90 – Devemos lança-lo no inicio do próximo ano.
Ano que vem devo filmar O Adeus do Comandante, inspirado num conto do escritor amazonense Milton Hatoum. Estou desenvolvendo com a Gullane Filmes e com Walter Salles o desenho animado A Arca de Noé, inspirado nas poesias infantis de Vinicius de Moraes.
CLUBE: Quer deixar alguma mensagem/convite para que as pessoas vejam “Tudo que Aprendemos Juntos”?
Sérgio: Tudo que Aprendemos Juntos foi lançado em agosto desse ano no festival de Locarno, na Suíça numa sessão chamada Piazza Grande, onde foi visto por 9.000 pessoas de toda Europa. Desde então passamos o filme no Rio, em sessões especiais em São Paulo, Fortaleza e Salvador. Em todos esses lugares a reação das pessoas é muito forte. A música e história juntas constroem uma atmosfera de pura emoção que poucas vezes havia visto numa sala de cinema.
Tanto no exterior quanto no Brasil as críticas foram excelentes e o filme já foi vendido para mais de 25 países. Saiu num jornal em Locarno que o filme fez os críticos suíços chorarem. Nos outros lugares que o exibimos a reação tem sido semelhante. Fica aqui o convite para os cearenses se emocionarem com “Tudo que Aprendemos Juntos” que entra em cartaz a partir do dia 3 de dezembro.