Orfeu Negro (Orfeu Negro/Orfeo Negro/Black Orpheus, França/Brasil/Itália, 1959) de Marcel Camus
Imagine o antigo Mito de Orfeu se passando em pleno carnaval carioca da década de 1950. Na verdade, quem inicialmente pensou isso foi Vinícius de Moraes ao escrever a peça Orfeu da Conceição (1956), que serviu de base para o roteiro do longa Orfeu Negro (Orfeu Negro/Black Orpheus, França/Brasil/Itália, 1959). Dirigido pelo francês Marcel Camus, o filme venceu a Palma de Ouro em Cannes daquele ano, além do Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro em 1960.
Obra inteiramente gravada no Rio de Janeiro, com atores (a maioria) brasileiros, e todos interpretando em português. Contudo, apesar de constar como produção França/Itália/Brasil, é considerado um filme francês, pois, além da direção de Marcel Camus (responsável também pela adaptação do roteiro), foi produzido pela parisiense Dispat Films, com coprodução da italiana Gemma Cinematográfica. Sim, o filme ganhou o Oscar, mas a estatueta não é do Brasil.
Entretanto, isso não é algo a lamentar, pois Orfeu Negro não representa o país como deveria. Personagens bastante estereotipados e até mesmo animalizados trazem para o espectador a ideia de que o nosso povo é exótico, irracional e só pensa em festa. Possivelmente, um filme direcionado para o público estrangeiro com o intuito de reforçar preconceitos. Talvez por isso, infelizmente, tenha sido tão aclamado.
Não à toa, o próprio Vinícius de Moraes, na época, ficou indignado com o resultado do longa que, apesar de ter sido aplaudido lá fora, foi criticado aqui no Brasil. Assim como na tragédia mitológica grega, Orfeu (Breno Mello) se apaixona por Eurídice (Marpessa Dawn), e, em meio ao romance, os dois acabam morrendo. No filme, ela é uma moça do interior que, perseguida pela Morte (Ademar da Silva), foge para o Rio de Janeiro.
Já Orfeu é um condutor de bondes e músico nas horas vagas que foi interpretado por um ex-jogador de futebol sem qualquer experiência nas artes cênicas. O elenco como um todo apresentou péssimas atuações. Nos momentos mais emotivos, a câmera não está centrada ao rosto dos atores, que não conseguem passar qualquer dramaticidade aos personagens. Dessa forma, vemos uma obra que se torna cansativa ao espectador.
Inexperientes na época, quase nenhum dos atores construiu uma carreira de sucesso após Orfeu Negro, mesmo com a enorme repercussão que ele teve. A narrativa é muito rápida, e a confusão, provocada por um tom exageradamente carnavalesco, deixa o filme agoniante. Ainda que tenhamos mais de uma hora e quarenta minutos de exibição, não é dado espaço para a construção dos personagens, que aparecem bastante rasos.
Da forma que foi construído, muitos elementos do enredo são inexplicáveis, como a própria paixão entre os protagonistas, que surge do nada. A não ser que, para que a história faça algum sentido, vejamo-los como animais que apenas seguem os instintos. E esse tipo de representação é recorrente: o cenário das casas montado como se fossem currais; os personagens dormem em meio aos bichos e parecem não tomar banho.
Dentre os acertos do filme, que aparecem apenas mais para o final, estão as metáforas como o arquivo de desaparecidos representando a descida de Orfeu ao inferno, de onde ninguém é encontrado, e o terreiro de candomblé como meio de comunicação com o reino dos mortos, onde, assim como na mitologia grega, é imposto ao personagem a condição de “não olhar para trás”. Caso desobedeça, poderá perder, para sempre, a mulher amada.
O ponto alto do filme é, sem dúvidas, a trilha sonora (essa sim, verdadeiramente brasileira) assinada por Tom Jobim e Luís Bonfá. Destaque para belíssima Manhã de Carnaval, composta especialmente para o longa e que se tornou uma das mais conhecidas canções brasileiras no exterior, regravada, em diferentes idiomas, por nomes como Frank Sinatra, Luciano Pavarotti, Plácido Domingo, Cher e George Benson.
Em 1999, foi lançado um filme de Cacá Diegues intitulado apenas de Orfeu. Deixo para analisá-lo em outra ocasião. Na época, o diretor afirmou à imprensa que não se tratava de um remake, mas de uma obra diretamente inspirada na peça de Vinícius de Moraes de 1956. Quanto a Orfeu Negro, com certeza, um filme que desmereceu ser premiado. Ainda bem que não estamos falando de uma obra do cinema brasileiro, não é mesmo?