Brasília, 16 de setembro de 2017*
Na primeira noite da Mostra Competitiva do 50. Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, foram exibidos os longas “Música para quando as luzes se apagam” de Ismael Caneppele, e “Vazante” de Daniela Thomas. O cenário era uma Cine Brasília lotado até a tampa – muitos sentaram nos corredores do cinema nas exibições – e sessões atrasadas em cerca de uma hora do estipulado. Mas ambos os filmes foram bem recebidos por uma plateia acesa politicamente – aos gritos de ‘Fora Temer’ e ‘Golpistas’ (bradado sempre que passava a logo da Globo Filmes, por exemplo), e que aplaudiram as obras em mais de uma ocasião.
“Música para quando as luzes se apagam” de Ismael Caneppele: uma autora (Julia Lemmentz) chega ao sul do Brasil com a intenção de transformar a vida de Emelyn em uma narrativa ficcional. Quanto mais a autora provoca a jovem com suas câmeras, mais Emelyn se torna Bernardo, um adolescente dividido no meio de seus desejos.
Pode-se dizer que o drama da jovem Emelyn – que varia entre o real e o ficcional – é traduzido em sua abertura, ao colocar a sua protagonista para caminhar entre uma trilha tortuosa e escura, rumo a uma fogueira, ou, a luz, na qual ela se desnuda e se encontra. Mas a própria escolha da narrativa de Vlog, com muita câmera na mão, luz natural e conversas informais, se perde no meio do caminho, ao reproduzir sequências (aparentemente) ficcionais que contam e recontam a história provocativa, e de tema necessário.
Inicialmente parece ser uma entrevista entre Julia Lemmentz e Emelyn, uma personagem real em busca da sua identidade, mas depois nos deparamos com sequências mais cinematográficas. Enquanto a garota por quem é apaixonada dança com uma camisa do The Cure (ela é a cura?), se ascende uma fagulha sexual, para depois cair numa desilusão amorosa. Há também seu envolvimento com um turma de garotos, uma experimentação com um deles (o equivalente à uma guitarra distorcida, bem representada na tela) e até uma volta na moto com um deles desnudo.
Entre as discussões sobre a sua identidade de gênero (e voltando à câmera na mão), o pai aparenta apoiar em sua fala, mas não consegue trocar uma palavra com sua filho(a) quando estão a sós. No meio tempo, a suposta narradora some da trama, retornando apenas para explicar sobre a importância da glândula da felicidade (Timo)… E quando Emelyn não responde mais ao seu nome, é hora de dar adeus ao sexo feminino, para se doar aos seus desejos mais reprimidos. Apesar da necessidade de falarmos sobre identidade de gênero, liberdade em nossas escolhas e sexualidade livre, o drama de Ismael Caneppele tem uma narrativa frouxa e inconsistente, pela suas escolhas de linguagem e roteiro quebrado em partes desiguais de real e ficção.
“Vazante” de Daniela Thomas: na Minas Gerais de 1821, depois de longa viagem conduzindo uma tropa de escravos, Antonio (Adriano Carvalho) descobre que sua mulher morreu em trabalho de parto. Sentindo-se sozinho e isolado em uma fazenda improdutiva, ele busca um novo casamento com Beatriz (Luana Nastas), uma menina muito jovem e que precisa aprender a viver.
Parte da história do Brasil está em “Vazante”. Fotografado com um P&B que ressalta uma realidade forte, o filme transborda em ser rústico e trabalha com a aspereza do tempo. Se já não bastasse a marcha angustiante de escravos acorrentados, a chuva e a lama tratam de deixar claro que o clima está pesado. Não podia ser diferente, com temas como a própria escravidão, as imposições sociais, a opressão feminina (incluindo aí a cultura da Mucama, com as escravas não apenas escravas sociais, mas também sexuais), a pedofilia e o abuso sexual, além da costura de dramas que se passam entre a Casa Grande e a Senzala. O cenário é entristecedor.
Sim, a montagem é bem tradicional – até com muitos fades e cortes secos, com grandes planos e panorâmicas que ajudam a ressaltar a grandeza da história daquele lugar – e até o segmento da traição parece trilhar para algo previsível e trágico. Contudo, seu contexto histórico é tão rico quanto a sua pesquisa histórica, cultural e iconográfica. A música africana e seus dialetos (apesar da não tradução dos escravos – o que nos leva a crer numa falta de voz dos mesmos), a batida dos tambores, a inserção do misto de dança de roda e luta (a capoeira?), de sua alimentação (a criação da feijoada?), e seus costumes de época, tudo é inserido de forma natural à sua narrativa.
“Vazante” é um filme de pedigree, uma grande produção visual e tecnicamente. Com uma trama que se passa no Brasil do período colonial – colocado um ano antes da independência de Portugal – o que se vê na tela é uma cultura antepassada. Triste, mas real. Exatamente (e infelizmente) por representar a construção de nossas relações sociais, o poder do patriarcado e condições hierárquicas no Brasil. Quem é que manda? Quem obedece? Quem vive? Quem morre?
* Jornalista viajou à convite do Festival.