Titane (2021) de Julia Ducournau
Honestamente eu fico muito alegre em saber que em 2021, três mulheres cineastas ganharam três dos principais prêmios mais importante do cinema: Chloé Zhao (Oscar de melhor direção e longa), Julia Ducournau (Palma de Ouro em Cannes) e Audrey Diwan (Leão de Ouro em Veneza).
Ainda não tive o prazer de assistir o vencedor de Veneza deste ano. Mas quanto aos longas de Zhao de e de Ducournau, é muito bom ver que ambas ganharam por abordagens que sempre adotaram em suas carreiras. E ainda mais se compararmos as diferenças gritantes das narrativas adotadas.
Titane é um filme estranho, chocante e que provavelmente não será unanimidade, como Parasita de Bong Joon-ho. Entretanto não se enganem, Ducournau, tem plena ciência da narrativa que está construindo. E quando achamos que entendendo os caminhos que a história pode nos levar, a diretora sempre nos surpreende, levando o espectador em direções ainda mais interessantes.
Alexia (Agathe Rousselle) é dançarina com muitos fãs que na infância sofreu um acidente de carro e qual uma placa de titânio foi posto em sua cabeça, e a partir daí começou a nutrir desejo sexual por carros. Devidos a diversos acontecimentos da sua vida, ela é obrigada a adotar uma nova identidade. E essa escolha irá mudar sua vida radicalmente.
Apesar de uma sinopse acima pode parecer vaga ao leitor, mas é proposital. Quanto menos você saber do que realmente se trata o longa, mais potencializada será sua experiência (para bem ou para mal). Entretanto, tenho que abordar uma cena chave na trama: Em determinado momento, nossa protagonista faz sexo com um carro e engravida. Além de ser mais uma das cenas impactantes do longa, é importante pontuar, pois sucinta inúmeros reflexões de toda a trama.
A diretora utiliza duas abordagens primordiais para depois abrir um leque na trama em que está contando. A primeira é o desejo e pulsões sexuais, já a segunda é uma marca da filmografia da cineasta, o “body horror”.
Titane é um estudo de personagem de sua protagonista que é fria e calculista, mas perfeito para mensagem do longa. Alexia age como uma máquina. Pouco fala e tem imensa dificuldade em se relacionar com outras pessoas. A interação com seus pais é nula, e o que apenas a move são suas pulsões sexuais, que por exemplo envolve a personagem Justine (Garance Marillier). Entretanto, até mesmo o sexo é algo que a personagem não consegue um vínculo afetivo com ninguém.
Ducournau (diretora de “Grave”), não poupa em nos chocar e incomodar. O “body horror”, com cenas fortíssimas, que muitas vezes parte para um humor ácido. Mas não se engane a escolha dessa abordagem é para potencializar o drama da personagem. A diretora utiliza desde o começo inúmeros signos: metal, carro, fogo em um excelente design de produção de Laurie Colson e Lise Péault, que se repetem e dão novos significados à narrativa.
Podemos evocar os cineastas David Cronenberg e John Carpenter, que também por utilizarem o “body horror”. Entretanto, Ducournau vai além. O horror é utilizado como uma maldição e uma constante busca pela identidade do vazio existencial que Alexia vive. A gravidez não é algo desejado, mas sim um grande fardo. E aqui a diretora abre espaços para criticar a feminilidade e o machismo da nossa sociedade que se atenua ao decorrer da trama.
A fotografia de Ruben Impens é perfeita. Utilizando luzes neon duas cores de destaque: o amarelo e o rosa. Onde as duas enfatizam signos e a psique da protagonista. Além de excelente equilíbrio de câmera na mão e planos mais estáticos, onde reforça sempre o constante desconforto da personagem principal enquanto tenta entender o que está acontecendo consigo e em sua volta.
Mas a genialidade da cineasta francesa está em transformar Titane é uma história de amor, por mais estranha que seja. Alexia, por uma série de motivos, assume outra identidade. O que nos leva ao capitão de uma frota de Bombeiros, Vincent (Vincent Lindon). Um homem amargurado que procura seu filho desaparecido há anos. Alexia, se faz passar por uma grande mentira, e as proporções desse ato, ela não poderia imaginar.
A presença de uma figura paterna aumenta o drama de nossa protagonista, pois além de signos se repetirem que a atormentam, a figura do pai, passa a ser compreensível a nossa protagonista, que nunca conseguiu nutrir nada por alguém. Mas o fato de esconder sua gravidez, criando uma estranha sensação de tensão pelo o que pode acontecer e depois afeto, pelo caminhos que a história toma.
Mas a sagacidade da diretora está em construir inúmeros caminhos que sua trama poderia seguir, que faz o espectador ficar apreensivo. E em todos os casos, com o decorrer de acontecimentos da trama, pensamos sempre no pior. Porém, Ducournau sabe a mensagem que quer passar. E o terceiro ato e a última cena é perfeita, pois é um misto de tragédia com o mais belo (estranho) amor.
Titane é um filme difícil e desafiador, e Julia Ducournau cria uma narrativa estranha que choca em um longa imprevisível. A Palma de Ouro de Cannes em 2021, não poderia estar em melhor mãos, pois mais diviso e incômodo que a película seja, é impossível ficarmos indiferentes perante sua abordagem.