O cinema já contou inúmeras histórias da relação de pais e filhos. Um tentando se encontrar com o outro. Um tentando superar o outro. Um tentando conhecer o outro. Um tentando entender o outro. Complexo de Édipo, Complexo de Elektra, a psicanalise cansou de dar nomes míticos para as narrativas dessas relações. Essa dinâmica familiar constitui jogos de afetos que entrelaçam histórias diferentes, mas consanguíneas, tão distantes e tão próximas ao mesmo tempo. Isso não é tão diferente no novo filme de Pedro Diógenes: A Filha do Palhaço. Trata-se de uma história simples de uma filha que vai ficar um tempo com seu distante e ausente pai, enquanto a mãe viaja, e nesse período conhece e reconhece a si mesma, assim como seu pai. Não percebemos com tanta clareza nesta obra a característica ousadia linguística e semiótica do diretor – o que não quer dizer que não exista. Porém, nesta obra, Diógenes se preocupa mais em nos encher de afetos com uma história simples e tão fácil de encontrarmos na nossa realidade.
Joana (Liz Sutter), uma garota de 14 anos, vai passar um tempo com seu pai, Renato (Demick Lopes), um humorista de bares e restaurantes da noite fortalezense. Pai ausente, Renato sente a angústia da distância e tenta ser aquilo que nunca foi, enquanto Joana busca nele o pai que ela queria. Neste conflito, ambos constroem uma relação que não tinham, que não queriam, mas que precisavam para se reconectarem com a vida antes vazia.
Co-diretor do premiado Inferninho (2019), e diretor de Pajeu (2020), Diógenes parece ousar construir histórias a partir de estratégias narrativas que usam elementos que estabelecem circuitos semiótico. São objetos, luzes e cores que encontramos constantemente em alguns lugares de nossas cidades; são personagens tradicionais que andam em nosso meio e estão no nosso cotidiano; são fotografias da cidade que apresentam ou mexem com quem a conhece. O jovem diretor parece buscar não uma inovação em sua linguagem, mas fazer do experimento sua própria forma de filmar. Não é à toa que entre Inferninho, Pajeu e A Filha do Palhaço encontramos 3 filmes completamente diferentes se não atentarmos para a construção das personagens que aproveitam do simbolismo para agir e direcionar sob as narrativas: o coelho, o monstro do riacho, o humorista. Temos aqui vértebras simbólicas que se tornam canais por onde o diretor e co-roteirista constitui sua narrativa e sua estética enraizadas no solo cultural fortalezense, transbordando de afetos. Histórias simples se tornam belas a partir desses traços complexos que cativam os espectadores.
Joana é o centro da narrativa. Sua vontade de conhecer melhor o pai nos apresenta Renato, que possui uma vida atrás de maquiagens exageradas e roupas extravagantes de sua personagem Silvanelly. O roteiro escrito pelo próprio diretor e por Amanda Pontes e Michelline Helena revela com paciência elementos das histórias das personagens que se costuram em suas diferenças. A arte do encontro de duas personagens tão próximas é o início do desfiar de um novelo de linha que acaba por constituir um circuito de afeto materializado na tela pelo diretor. E ele o faz com competência. Em prol disso, deixo de lado um pouco as passagens expositivas que são desnecessárias neste filme, e que, na minha experiência, não se firmou como algo de muito incômodo. Essa “barriga” é engolida pela belíssima fotografia de Victor de Melo (Inferninho), parceiro do diretor em outras obras, que contempla a história com as luzes diegéticas da cidade e as pinceladas mágicas que trazem o carinho que sempre está a espreita entre as personagens com cores que estimulam nossa empatia sensitiva sobre o estado emocional das personagens.
Sobre o elenco, a grata surpresa nos foi apresentada por Liz Sutter, que interpreta Joana. Primeiro trabalho da atriz que parece insegura nos momentos iniciais do filme, mas que a medida em que a narrativa se desenvolve, ela se apresenta com espantosa maturidade. Sua jornada na primeira atuação cinematográfica constrói bem uma adolescente rebelde, curiosa, mas com uma grande vontade de amar o pai. Porém, em alguns momentos na relação entre ela e Demick Lopes senti uma forte presença da teatralidade, que, a mim, atrapalha um pouco a fluidez da naturalidade da personagem no cinema. Por isso, percebi uma certa demora na constituição da química entre elas. Fez parecer existir um vazio, que é compreensível se isso foi uma estratégia da direção para mostrar o distanciamento das personagens. E caso tenha sido isso, não foi amarrada o suficiente para nos dar uma certeza. Por isso, não digeri bem essa forma de mostrar o distanciamento. Isso se agrava quando, ao mesmo tempo, temos um excesso de teatralidade e de intervalo entre diálogos. Há com isso uma pequena demora para o filme engatar, uma vez que a história depende muito desta química ou do processo de construí-la. Desta feita, é preciso dizer que ela acontece, mas não de uma forma tão fluida quanto esperei que fosse, mas também sem barras forçadas. Creio que isso acontece devido a melhora do entrosamento entre o elenco, que com o apoio da personagem de Jesuita Barbosa, eleva a relação empática que há nas personagens e na história.
Contemplativo por muitos momentos, A Filha do Palhaço passeia pelas noites de Fortaleza para conhecer o pai e a si mesma. A cidade é fundamental nas histórias do diretor, uma vez que é dela nosso solo cultural que nos forma e formam suas personas. Tomadas da cidade se espalham durante momentos chaves na conversa do pai e da filha. A noite de bares e de boemia. O mar como objeto do olhar distante e infinito, um horizonte perdido que precisa ser resgatado. Os artistas da noite e das calçadas que nos encontram e nos chamam para pequenos espetáculos de amor e alcool. A Fortaleza que Diógenes documenta em seu filme é a cidade de contrastes e de beira mar, de riso e de drama, de espelhos brilhantes para o turista e da força humilde do trabalho. De histórias simples que se distanciam, mas que quando se encontram, despertam uma empatia surpreendente. A Fortaleza do afeto e o carinho de uma filha e de um pai.