Ninfomaníaca e as inquietações psicanalíticas
Por Lívia Menezes*
Inquietação. Esta é a primeira palavra que penso quando há um novo filme em cartaz de Lars Von Trier. É também a primeira sensação ao ver o filme. Sempre. Este sentimento se repete desde Dogville (2003), passando por Manderlay (2005), Melancolia (2011) e agora também na mais recente obra do diretor, Ninfomaníaca (Nymphomaniac, 2014), obra esta já tão esperada pela crítica, fãs e, claro,curiosos.
Sempre abordando conteúdos densos e, para muitos, perturbadores, o diretor consegue trazer à tona questões humanas tão obscuras que podemos até achar que não acontecem aqui, corriqueiramente, na dimensão da realidade e transportá-las à tela grande. Os mais desavisados podem pensar que só acontecem nos lugares mais escondidos do inconsciente. E Lars Von Trier, em sua própria inquietação, apresenta um relato tão real que mesmo o mais ingênuo do espectador deve, assim como eu, inquietar-se.
O filme, em sua primeira parte, nos retrata a vida de Joe (Charlotte Gainsburg), uma personagem que logo no início se apresenta, em suas próprias palavras, como um ser humano mau, egoísta e que vive em função do seu prazer. Com isso, iniciamos a construção desse personagem com dúvidas, sombras: por que Joe seria tão má?
Machucada, não sabemos ainda por qual motivo, Joe é socorrida por um homem de origem judaica (saberemos isto ao longo da história), Seligman (Stellan Skarsgärd). É, então, levada para a casa deste e, a partir de então, a personagem, deitada em uma cama, passa a contar toda a sua vida, principalmente sexual, a este desconhecido.
É impossível não associar esta cena ao setting psicanalítico. A cama remete ao divã. Joe está deitada a contar sua história falando livremente. Seligman, um desconhecido, escuta atenciosamente e faz pontuações e intervenções. Ah, não esqueçamos o sutil detalhe apresentado pelo diretor: Seligman possui a mesma origem judaica que o pai da Psicanálise, Sigmund Freud. Quanta sutileza.
Não é somente aí que podemos recorrer à teoria analítica para compreendermos (e analisarmos) o filme e a sua densidade. Joe e o prazer. Joe e os homens-objetos. Joe e a desvalorização das relações humanas. Joe e a relação com as figuras paternas – um pai carinhoso, uma mãe ausente (?). Joe e a fixação (sexo). Joe e o fetiche (mãos). Joe e a não-satisfação. Joe e a lei. Joe e as transgressões de lei. Joe e o cumprimento de suas leis. Joe e o proibido. Joe e o desejo. Joe e o amor.
Um psicanalista dedicado será impulsionado a tentar entender, ao longo do relato da personagem, em qual estrutura aquela personagem se encaixa, como ela funciona, quais seriam seus próximos passos. Ela que não sente, que busca o prazer incessante, que não se satisfaz, que as faltas não são preenchidas nunca – nem quando o pretenso amor volta à bater na porta. Definitivamente, não é pela via do amor que a personagem encontrará sua saída.
Em cena chave, Joe pede, desesperadamente, enquanto pratica mais um ato sexual, que o companheiro lhe preencha todos os buracos na vã tentativa de, enfim, satisfazer-se. E ao perceber que esta completude não é possível, frustra-se. Não, ela não sente nada. Mais uma vez nos remetemos aos conceitos analíticos da falta e da constituição do sujeito como desejante, em que estes “buracos” não teriam com ser preenchidos. Existe a falta, ela perpassa a nossa constituição.
E Lars Von Trier nos deixa mudos, atônitos com as cenas finais. Nada, não há nada a ser sentido, Joe. Fim. Um turbilhão de questionamentos me vem a cabeça. Certamente, uma aula de Psicanálise, mas, penso, inquieta, como acabar o filme agora? Um corte, a castração do espectador. E na personagem? Só me resta aguardar a próxima parte do filme, prevista ainda para esse ano, com, sem dúvidas, ainda mais inquietações.
Ninfomaníaca: a arte do sexo e o sexo na arte
Por Daniel Herculano
Como se intitula o filme, Joe (Charlotte Gainsburg) é assumidamente uma Ninfomaníaca (Nymphomaniac, 2014). A mais recente obra de Lars Von Trier, um mestre em polêmicas perturbadores transformadas em películas, como Dogville (2003), Anticristo (2009) e Melancolia (2011), nos apresenta uma protagonista entregue a própria dor, física e psicológica.
Numa fria noite de inverno, Seligman (Stellan Skarsgard) encontra Joe violentada num beco. Ele a leva para o apartamento dele, onde cuida de suas feridas e faz perguntas sobre sua vida. E assim Joe conta a sua história em cinco capítulos (seguindo o estilo do diretor e roteirista).
As analogias não custam a aparecer. Von Trier compara o sexo de forma mais mais simples ao adotar a pesca, as fórmulas logarítmicas e depois a musica matemática de Bach ao tratá-la como tons de seus amantes. É uma simples conexão com o espectador que não alcança o tom psicológico da obra, além de momentos curiosos que se tornam cômicos. Alguns, não muitos.
A direção do dinamarquês deixa claro como devemos perceber Joe. Ao começar a contar sua história sexual, visualmente a percebemos a distância. E, conforme os atos apresentados – os quais a protagonista assume como cruéis – Trier vai aproximando sua câmera dos seus ferimentos. Ela vai se tornando cada vez mais “feia”. A perna aparece com sangue, o hematoma a deixa mais “nojenta”… Ao final do 1º capítulo o foco está em seu rosto. Em contraponto, sua eu mais jovem, Stacy Martin é um esplendor de beleza, aparentando pureza por fora, mas como a mesma assume, podre por dentro.
Dotada de um vazio existencial, Joe é a busca incessante pelo complemento humano. Despudorada desde a infância, quando brincava com uma amiguinha de fazer sapinho no banheiro, sua vida sexual começou cedo, ao perder a virgindade aos 15 anos, ao escolher o felizardo pela fixação em suas mãos fortes. Suas aventuras seguem pela adolescência e uma viagem de trem animalesca resumem bem sua concepção de homem-objeto, coroado por um sexo oral visto de forma visceral.
E o amor, será possível para alguém sem sentimentos? Apesar de uma carta escrita para Jerôme (Shia LaBeouf) no ato de mesmo nome, das cinco histórias da 1ª parte, em apenas uma delas – “Tremor” – Joe demonstra alguma emoção, e através do sexo, ao assumir que se “molhou” após um fato familiar. Após encontros e reencontros, quando ascende a chama de uma possibilidade através de uma série de improbabilidades, o vazio existencial de Joe não a permite sentir nada. Freud explica.
Além da atuação escandalosamente artística da novata Stacy Martin, Uma Thurman impressiona numa das sequências de humilhação mais maravilhosas do cinema. Um grande texto de Lars Von Trier, que Thurman aceita com exatidão sua condição de mulher traída no capítulo de “Mrs. H”. Charlotte Gainsburg e Stellan Skarsgard tem um bom entendimento entre atos, mas não tem maior espaço para maiores voos. Christinan Slater tem poucos momentos como o pai de Joe, e menos ainda sua esposa, Connie Nielsen. Vamos esperar o segundo capítulo (e final) da obra para ver mais deles em ação, assim como Willem Dafoe, que aparece no preview do próximo longa.
Sim, e antes que haja um questionamento sobre a falta de pudor na maior parte de Ninfomaníaca – Parte I, vejo que não há o que se questionar. Ora, sexo é o tema central da fita, e sua trama apresenta o sexo como arte, portanto não tem porque haver um constrangimento ao usar o despudor como fator de distanciamento. Há exposições de órgãos genitais, e o sexo acontece sim, em maior ou em menor grau. E a arte do sexo se faz necessário, exatamente por ser bem articulada pelo diretor e roteirista Lars Von Trier. Agora, após acompanhar o perturbador sexo artístico durante quase duas horas – apesar de “minha vulva, máxima vulva” (único ponto baixo do longa), o desafio é sair do cinema intacto de questionamentos. Eu duvido. A primeira já foi. Que o segundo venha logo.
* Lívia Menezes é formada em Psicologia pela Unifor e faz formação continuada na teoria psicanalítica desde o início de sua graduação. Cursa também Especialização em Psicodiagnóstico, realiza atendimento psicanalítico e psicoterapia de crianças, adolescentes e adultos na Lumière Clínica de Psicologia. Além da atuação clínica, trabalha com seleção e avaliação psicológica.