Deserto Particular (2021) de Aly Muritiba
A categoria de melhor Oscar internacional tem sido uma das mais disputadas desde as mudanças que a Academia tomou para melhorar sua credibilidade e diversidade da premiação. O Brasil sempre foi um forte pólo produtor de Cinema para o mundo, mas desde Central do Brasil (1998) não consegue chegar entre os finalistas da Academia de Hollywood. Para piorar, desde o governo golpista ter assumido o poder, e o seguinte e atual sabotar toda nossa cadeia Audiovisual, é quase que contraditório a ideologia imposta do nosso “governo” tenha deixado passar justamente Deserto Particular como representante brasileiro para a disputa no Oscar 2022. Sim, pois temos aqui uma obra que preza tanto pelo o amor, pela diversidade, e abraça uma quebra de padrões para as descobertas da vida.
O talento do realizador Aly Muritiba é incontestável. Dono de extenso e vencedor currículo, como o prêmio de melhor filme no Festival de Toronto e da audiência no Festim, por A Fábrica (2011); Kikito de Ouro de melhor diretor e roteiro por Jesus Kid (2021); melhor filme em Gramado por Ferrugem (2018), filme que também foi indicado como melhor filme nos festivais de San Debastían, no Havana Film Festival, e em Sundance (Cinema Mundial – Drama); Indicação ao Prêmio Descoberta em Cannes por Pátio (2013), entre outros.
Em Deserto Particular (vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Veneza) estamos diante mais uma vez de uma grande e sensível obra. Pois, além de evidenciar a política e a diversidade do nosso país, o realizador escolhe contar sua história na perspectiva do amor ao invés de conflitos mais diretos. E por duas óticas distintas. Bem, irei parar por aqui. Pois comentar certos pontos do longa, fundamentais para a trama, pode vir a atrapalhar a experiência do leitor/público.
Conhecemos Daniel (Antonio Saboia, de Bacurau), um policial, que devido a um incidente violento grave, colocou toda sua carreira em risco. Ele cuida do seu pai, um ex-militar com problemas de memória, e não se dá bem com sua irmã mais nova. A única coisa que preenche sua mente e dá esperança no momento em que vive é Sara, uma mulher com quem se relaciona virtualmente. Mesmo assumindo o risco de colocar tudo a perder, nosso protagonista viaja de carro de Curitiba ao interior da Bahia com o intuito de encontrar sua amada. E esse encontro irá mudar o destino dos dois.
Daniel é aparentemente a figura masculina “padrão”. A escolha de ser um policial e ter um pai que era militar e não se dar bem com a irmã, principalmente quando ela diz está namorando uma garota, o que lhe causa desdém, é a maneira que diretor estabelece a famoso “cidadão de bem”, tanto deseja por parte da população do nosso país. Mas, aos poucos, vemos que o protagonista tem um bom coração. Visitar ao recruta que ele machucou, onde Daniel tem uma mão engessada (signo que além de nos mostrar a gravidade do incidente, será utilizado mais na frente na trama como ponto de libertação). E principalmente deixar tudo para trás, em busca de seu amor, demonstra um personagem que mesmo aparentando ser bruto, no íntimo anseia por mudanças.
Roteiro escrito por Muritiba e Henrique dos Santos o longa é clássico dito popular: “O caminho é mais importante que o destino’. Inicialmente o diretor usa mais planos estáticos e primeiro planos de Daniel mostrando sua psique mais introspectiva. Quando começamos a viagem, planos mais abertos diante e leve movimentos de câmera, geralmente em panorâmica, demonstram ao mesmo tempo confusão com o desejo pela mudança interna.
Mas alguns elementos técnicos/artísticos devem ser destacados. A fotografia de Luiz Armando Arteaga, consegue transitar brilhantemente entre o frio de Curitiba e a sensação de calor do interior da Bahia. Além de banhar sempre com a cor verde, qualquer relação a Sara, seja da cor do Whatsapp, que Daniel conversa com ela ou ambientes de quartos e boates. A edição de Patricia Saramago utiliza cortes rápidos, transitando sempre para a ação seguinte. E a trilha sonora de Felipe Ayres, além de criar uma sensação introspectiva de solidão e utilizar violinos, utiliza muito violão, o que remete ao mestre argentino Gustavo Santaolalla.
Ao chegar no interior onde Sara vive, para encontra-la, Daniel espalha cartazes pela pequena cidade com a foto da moça. Ao encontrar finalmente a personagem, ela foge, e o espectador sabe o motivo. Uma nova perspectiva nasce na trama, que estabelece novos caminhos narrativos.
Não é como se o filme recomeçasse, mas agora passamos a seguir Sara (que é tão protagonista da história quanto Daniel). A personagem traz novas perspectivas para a trama e a mensagem de Muritiba fica mais clara: as descobertas, quebra de padrões e o amor, que parece estar embaixo d´agua, adormecido, como uma cidade submersa apontada na narrativa.
Sara é o oposto de Daniel, mas com um desejo em comum: largar tudo e sair de onde vive, por mais que sua motivação não seja a mesma. Temas como diversidade, religião e conservadorismo envolvem nossa protagonista, que apenas têm seu amigo vivido pelo ator Thomas Aquino (o “Pacote” de Bacurau), como ajuda para seus conflitos.
Daniel e Sara se reencontram em uma boate, e dançam em uma linda cena com “Total Eclipse of the Heart” tocando ao fundo. Apesar de muito desejo e amor intenso, é previsível para o espectador quando ele e ela realmente estabelecem o contato. Mas o diretor está constantemente subvertendo padrões através das descobertas da vida. Daniel tem uma visão engessada da vida, literalmente a quebra. O que faz o personagem enxergar o mundo de outra forma.
Já Sara, descobre, que assim como Daniel, não existem de fato amarras (o que podemos evidenciar na figura da avó e da igreja em que frequenta). Ela tem o direito de ser feliz aonde quiser. Ambos os protagonistas enfrentam seus desertos particulares, mas ao sair deles, eles saem transformados.
O único “defeito”, que encontro do longa, é justamente no incidente que envolve Daniel. Mesmo que não se faça parte da mensagem de Muritiba, tal ato tem proporções graves, chegando inclusive ao conhecimento de Sara. O que me faz perguntar: Ninguém procurou Daniel esse tempo todo? E qual será seu destino no final disso tudo? Ou melhor: Será que isso importa?
Deserto Particular é daqueles longas que constantemente desconstroem padrões, para construir novas percepções. Aly Muritiba mais uma vez mostra seu talento em construir uma narrativa poderosa e que faz o espectador refletir sobre sua obra e amor. Agora é torcer para que o filme consiga chegar entre os cinco candidatos finais ao Oscar de Melhor Longa Internacional. Pois motivos artísticos para ser um dos finalistas, a película tem de sobra.