O Diabo de Cada Dia (The Devil All the Time, 2020) de Antonio Campos
Nascido na pequena cidade americana de Knockemstiff, Ohio, o escritor Donald Ray Pollok iniciou sua carreira literária em 2008 com uma coleção de contos sobre sua terra natal, que também dá nome à obra. Seu primeiro romance, “O Diabo de Cada Dia” (The Devil All the Time, 2011), obteve reconhecimento internacional e, em 2020, ganhou uma adaptação cinematográfica pela plataforma de streaming Netflix.
Seguindo o viés pessoal de seu trabalho anterior, este também se passa na cidade em que o autor nasceu e cresceu, trazendo a desilusão e a violência que marcam suas histórias e personagens. O enredo segue a vida do jovem Arvin Russel (Tom Holland) e como invariavelmente ela se conecta a outros personagens da cidadezinha, nem sempre por ocasiões amistosas. Seu pai, interpretado intensamente por Bill Skarsgård, teve um papel definitivo no desenvolvimento de sua personalidade protetora e “justiceira”, principalmente em relação à sua irmã adotiva Lenora (Eliza Scanlen).
O diretor Antonio Campos consegue imprimir sua identidade no longa. O tom levemente desconfortável e as tragédias da psique humana em resposta a uma sociedade doente são elementos comuns à filmografia do cineasta. O elenco é outro ponto positivo, e certamente é o que atrai a maior parte dos espectadores, visto que muitos artistas, como Sebastian Stan, Robert Pattinson, Jason Clarke, Mia Masikowska, Harry Melling e os próprios Holland e Skarsgård, além de talentosos, já são rostos conhecidos do grande público pelos blockbusters em que trabalharam.
Considerando a ambientação sulista dos Estados Unidos, principalmente entre as décadas de 50 e 70, é natural que o teor religioso esteja presente e, nesse caso, tem um papel fundamental na trama. Sempre retratado como alienador, repressor e, por vezes, ridicularizado, o cristianismo é a linha que conduz a narrativa, estando de um modo ou outro ligado à motivação dos personagens.
A crítica religiosa é clara na relação entre a devoção cega e a liberação de instintos suprimidos de violência que são inerentes ao ser humano. Isso também pode ser observado visualmente no design de produção de Craig Lathrop e nos figurinos de Emma Potter que, mesmo retratando uma época relativamente contemporânea, tendem a dar uma estética antiquada às cenas, simbolizando os quão retrógrados são a mentalidade e os costumes do povo de Knockemstiff, e o quão a cidade parece estar isolada do mundo, regendo suas próprias leis e modo de vida.
Neste sentido, Arvin foge à regra no tocante às suas motivações, que são de natureza extremamente pessoal, não estando ligadas a fatores de ordem sobrenatural. Além dele, também temos Lee Bodecker (Sebastian), o xerife da cidade que também é deputado, e suas motivações são de ordem política. A história se desenrola justamente entre os dois encontros entre estes personagens, que são os pontos-chave da narrativa, onde a vida de Arvin muda de forma drástica e brusca em ambas ocasiões.
“O Diabo de Cada Dia” gera desconforto por ser real demais. Não no quesito gráfico da violência, mas nos dramas e traumas dos personagens que, embora vivam em um ambiente e em um período específicos, são facilmente relacionáveis com qualquer ser humano de qualquer época e lugar. A sujeira da alma humana encontra um espaço favorável para se mostrar das mais variadas formas, desde um simples comentário ofensivo até um assassinato deliberado.