Joana (Carol Martins) está pedalando por uma movimentada avenida de Porto Alegre quando um carro corta seu caminho violentamente. Assustada, Joana vai tirar satisfação com a motorista do carro. Joana se coloca a frente de um veículo pilotado por alguém que se recusa a conversar, que teve uma atitude disruptiva e agressiva, que a desumanizou. Joana encara, a sua frente, tudo aquilo que ela não quer ser. Então, a mulher que dirige o carro avança sobre ela, que gruda no capô do veículo e assustada aguarda pelo pior. Joana cai, enquanto o carro dirigido por essa pessoa violenta e covarde foge. Este é o início de “O Acidente”, primeiro longa-metragem do jovem diretor gaúcho Bruno Carboni – que estreou nacionalmente no 32º Cine Ceará – e que foi muito bem recebido pela audiência. O filme se inicia com um acontecimento rompedor à vida da personagem, que está em uma rotina se preparando para um outro acontecimento já programado e desejado com sua companheira: uma gravidez.
O filme de Carboni leva à tela um excelente contraste de famílias brasileiras que estão pautadas na atualidade política do nosso país. Joana, que está grávida, é casada com Cecília (Carina Sehn) e divide um apartamento de classe média na capital gaúcha. Elas sonham em construir uma família juntas. Uma família de casal LGBTQIA+ diferente da tal família tradicional brasileira, que está em profundo declínio. Carboni, então, retrata e constrói a história de sua personagem protagonista a partir das relações que ela cria durante este período de gestação. É algo novo para a sociedade, assim como é algo novo para Joana, que se vê envolvida com um caso familiar que ela não queria estar dentro. Depois do acidente, Joana faz um Boletim de Ocorrencia e é procurada pelo dono do veículo, que não era quem dirigia: Cleber da Silva (Marcelo Crawshaw), um rígido militar que está em processo de separação de sua esposa, Elaine (Gabriela Greco) – que era quem estava no volante e atropelou Joana – e que quer a guarda de seu filho, Maicon (Luiz Felipe Xavier). Este que filmou o acidente, postou o vídeo na internet e que viralizou. Cleber reclama que seu filho não é mais o garoto que ele conhecia e que isso é culpa da mãe. Sua solução? Dar uma educação mais rígida ao garoto colocando-o em uma escola militar.
Estes aspectos que conhecemos no primeiro ato do filme são a agulha e o fio que vão traçar a história, o perfil psicológico e as reflexões que a obra de Carboni quer trazer. Com camadas afetivas sutis, o diretor mostra sua habilidade em criar uma empatia entre o espectador e sua narrativa a cada quadro e sequencia pacientemente pensados e produzidos. Neste filme, não vemos pressa em resolver as questões trazidas ao campo. Pelo contrário, Carboni nos guia a partir de um início cadenciado, seguido de momentos de encontros que geram tensão em quem acompanha. Para tal, ele conta com as ótimas performances do elenco, mas principalmente de Carol Martins. Ela vibra em frequências emotivas que saem de uma monotonia quase blazé, passa por uma calma angustiante, atravessa uma inquietude contida e estoura em um clímax corajoso, na qual ela está mais uma vez de frente ao seu acontecimento.
Alerta de Possível Spoiler!
A condução narrativa de Carboni nos mostra um diretor seguro e que planejou com perfeita confiança a forma de contar a história. Prova disso são as disposições das personagens na tela. Sua mise-en-scène é construída para dar progressão ao desenvolvimento de Joana. O fluxo psíquico é progressivo, mas não retilíneo, e isso é percebido nas imagens construídas sob as lentes de Glauco Firpo, que dão uma frieza à Porto Alegre e “pitadas” de saturação quando Joana e Cecília estão juntas. O talento de Carboni se faz aparecer quando vemos a elipse que ele constroi em um grande arco que acontece no início e se encontra no fim do filme. Sem querer dar spoilers – já no risco de dá-lo – percebo que no início do filme, Joana, que ansiava – ou não? – por ter uma família com sua esposa está do lado de fora do carro encarando e sendo atropelada por uma pessoa sofrida. Ali, Joana estava via de fora um acontecimento que a atropelaria e mudaria muita coisa em sua vida. Ao fim, Joana encara a mesma pessoa sofrida, mas dentro do carro, da posição em que Maicon a gravou. Dentro do carro e na posição da criança vítima, Joana esperimentou um pouco do que poderia vir a ser a sua vida na maternidade. O acidente, o acontecimento disruptivo mudou tudo para Joana. Ela não é mais aquela mesma entre a frieza e o blazé que foi atropelada. Joana é outra. Atravessada pelo contato com a opressão da tradição e a resiliência de um novo que tenta se constituir apesar dos muros que o cercam ela se reconheceu, ou se reconectou com angustias internas que a transformaram. A jornada de Joana é um conflito que muitas brasileiras passam, principalmente quando se está em pauta a questão da maternidade.
Isso fecha o ciclo de O Acidente, que tem uma qualidade belíssima e deve ter uma grande jornada entre festivais. Fica minha torcida para que alcance o mercado e seja visto por mais espectadores afins de se encontrar com esse jogo de afetos que faz encontrar o tradicional e o novo, produzindo uma reflexão sobre o destino disso tudo.