Noite Passada em Soho (Last Night in Soho, 2021) de Edgar Wrigth
ESTE TEXTO CONTÉM RISCO DE SPOILER
Quando um projeto do eficiente diretor Edgar Wrigth é anunciado, o que se espera são ótimos usos do humor, expressão pelas cores, ritmo alucinante, uma pegada de aventura, e um maravilhoso dedo para escolhas de música. Aspectos da cultura pop pulsão em suas obras. Toda essa expectativa é parcialmente quebrada pela opção mais clara quanto a escolha do gênero do filme. Não é mais o “terrir” – horror de comédia – de Todo Mundo Quase Morto (2004), ou a homenagem aos vídeo games na comédia romântica com luta no aventuresco Scott Pilgrim contra o Mundo (2010) e muito menos o clássico gênero de filme de perseguição de Em Ritmo de Fuga (2017).
Dessa vez, o projeto de Wright aposta em um gênero que não tem no currículo do diretor: o thriller de investigação que conversa com o clássico sessentista do terror psicológico. Noite Passada em Soho (2021) é uma aposta que nos entrega uma obra redonda que coloca no meio de uma narrativa que margeia o surreal brincando com desejos, pureza, traumas e memória como ingredientes assertivos. Tudo para produzir uma atmosfera de horror, típica de filmes como os da trilogia do apartamento de Roman Polanski.
Sob uma direção cuidadosa, sem pressa, respeitando os tempos de respiros tão raros hoje no cinema caça níquel, Wrigth acerta na condução de sua obra dando a ela aspectos sofisticados, mas sem perder suas assinaturas. Obviamente, por ser um filme de tom mais sombrio, ficam muito mais raros os momentos de humor e comédia. Em vez disso, assistimos uma caricatura da pureza do desejo. Afinal, o filme conta a história de Eloise (Thomasin McKenzie), uma jovem do interior inglês que vai realizar seu sonho de estudar moda na “perigosa” Londres.
A jovem parece ter o dom de ver ou se comunicar com os mortos – isso não fica claro, o que acho ser proposital no roteiro – e por isso, há uma preocupação de sua avó, uma vez que o espírito de sua mãe morta parece estar a acompanhando. Sem se adaptar bem a nova vida de uma metrópole, Eloise abandona a república onde mora e aluga um quarto em um endereço, sendo inquilina da senhora Collins. Porém, no quarto em que passa a morar, Eloise parece ter acesso à vida de uma jovem aspirante a cantora, a glamourosa Sandy (Anya Taylor-Joy), vendo-se espelhar a imagem da talentosa moça.
Em princípio, Eloise vivencia as experiências de Sandy e cria assim um elo. Porém, ao testemunhar alguns momentos obscuros, Eloise percebe que a vida de sonhos da cantora começa a afundar principalmente pela intervenção dos homens que a desejam e a querem simplesmente para seus apetites sexuais. Começa assim uma saga de identificação, sororidade e investigação quanto aos eventos que por fim Eloise testemunha.
Dominando os elementos cinematográficos para além da fotografia que eleva a leitura dos sentimentos das personagens através da paleta de cores ao melhor estilo de Dario Argento e de Michelangelo Antonioni, e da montagem veloz que dá lugar a uma montagem que marca o ritmo do processo de aprofundamento dos acontecimentos psicológicos da narrativa, Wright mostra excelentes decisões. Desde os enquadramentos, aos movimentos de câmera, além do entrosamento das atrizes que mostram bastante de seus talentos na construção das personagens que estão na história.
Destaque para McKenzie que consegue dosar bem a personagem caricata com uma personagem misteriosa que possui uma força feminina que vence as marcas polanskianas tão questionadas hoje em dia – afinal, essas mulheres não precisam ser retratadas sempre como histéricas ou doentes submetidas às regras do mundo dos homens. Já Taylor-Joy entrega o retrato da mulher dos filmes noir, sedutora, talentosa e reprimida que testemunha os próprios sonhos sucumbir diante do poder masculino, mas que demonstra forças nas entrelinhas que acabam por modificar o destino da história.
Mas nem tudo são brilhos no filme. Há deslizes que, a mim, não afetaram muito a experiência. É perceptível que Wright opta por criar caricaturas, inicialmente para elevar a sensação de desconstrução do sonho de suas personagens. Mas a medida que percebemos as infindáveis escolhas criativas do diretor na condução do filme, sentimos um pouco a falta dela para a resolução do filme. Wright opta pela velha conversa reveladora muito comum aos filmes noir dos anos 1940.
Porém, extremamente ultrapassada hoje em dia – quando o vilão em uma conversa revela seus planos e toda sua história antes de cometer seu ultimo ato. Mas mesmo isso não afetou minha experiência com o filme, uma vez que eu já estava convencido de que assistia a uma obra com a estrutura clássica de atos, sob o comando de um conhecido e talentoso diretor que tinha ótimas escolhas para contar essa história que conseguia nos narrar os fatos de diferentes tempos sem optar pela estratégia simplista e fácil do flashback. Pelo contrário. Sua história nos faz pensar em importantes elementos da política como o acesso às memórias de desconhecidos que possuíam os mesmos desejos e sonhos que nós e o por quê de não terem dado certo.
A obra de Wright mostra a relação entre o desejo, a frustração e o acesso a memória que assombra a atmosfera de quem tem sororidade e simpatia por quem sofreu. Em principio, pensamos estar assistindo a um filme de assombração, depois percebemos que se trata de uma investigação, mas por fim, observamos que se trata de uma história que preza pela memória coletiva de assédios, de monstruosidades que afetam a vida das mulheres todos os dias e que elas, assombradas pelas histórias de si mesmas e de suas irmãs, parceiras, sentem o terror e a necessidade de reagir a tudo isso. O filme, apesar dos deslizes funciona como um clássico thriller de terror psicológico que não permite que suas personagens padeçam a loucura criada pelo mundo dos homens. Portanto, creio que seja uma obra com caminho pavimentado para a próxima edição do Oscar.