Murina (2021) de Antoneta Alamak Kusijanovoic
Murina é um tipo de enguia que vive nas profundezas do mar. Em seu habitat natural, elas geralmente são encontradas sozinhas ou pequenos grupos, em cavernas, saindo apenas para alimentar ou se reproduzir. Por mais que pareça estranho minha explicação científica de uma determinada espécie em uma crítica, não é à toa.
O primeiro filme da diretora Croata Antoneta Alamak Kusijanovoic, que recebeu a Câmera de Ouro no Festival de Cannes em 2021, usa o nome da espécie para dar nome ao seu longa, traçando paralelos e outras metáforas na construção da narrativa que irá contar. O drama é um “Coming of Age”, ou seja, que discute o amadurecimento, descobertas, relações de sendo de liberdade das escolhas que tomamos em nossas vidas.
Julija (Gracija Filipovic) é uma adolescente que vive com sua mãe Nela (Danica Curcic) e seu pai opressor Ante (Leon Lucev) em um Cais/Vila, no interior da Croácia. Mas a pacata vida de nossa protagonista muda quando Javier (Cliff Curtis), um antigo amigo de seu pai, que irá passar uma semana hospedado em sua casa. O visitante, que é bastante rico, é a fonte de esperança de seu pai para compra de um terreno de uma ilha para construção de um Resort. Porém, a presença da visita, vai mudando as percepções da jovem garota, em uma trama sobre amadurecimento, novas percepções de mundo e tensão sexual.
Produzido por Martin Scorsese, através de sua produtora Sikelia Productions e da brasileira RT Features, de Rodrigo Teixeira, mostra que a aposta na cineasta estreante foi certeira. A diretora desenvolve um drama de forma progressiva, ao mudar o status quo da vida dos seus personagens, enquanto se utiliza de várias metáforas para temas abordados durante o longa.
Julija é uma garota inocente, mas como uma personalidade forte e observadora. E o relacionamento hostil de seu pai, que também envolve sua mãe, traz um sentimento de solidão e enclausuramento na protagonista. Um paralelo que podemos fazer com as Murinas. Mas com a presença de Javier, começa o verdadeiro conflito na trama, mesmo que ela sempre seja pela perspectiva de Julija.
A fotografia fica por conta da já experiente Helène Louvart (Feliz como Lázaro, 2018; A Vida Invisível, 2019; Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre, 2020), a direção de arte Ivan Veliaca e figurinos Amela Baksic. Todos de fundamentais importância para as metáforas visuais propostas pela direção. Principalmente no uso das cores.
O maiô de cor branca utilizado inicialmente pela protagonista, dá lugar ao presente de Javier, que também se trata de maiô, mas com tom azul igual ao do mar. Essa simples mudança além de estabelecer o relacionamento entre os personagens, marca justamente a transição da inocência para uma criação de tensão sexual que Julija passa a nutrir pelo amigo do seu pai. O que é evidenciado também pela escolha de um antigo vestido vermelho, usado por sua mãe, marcando o desejo, enquanto Ante, usa sempre cores sóbrias.
A fotografia de Louvart é belíssima e precisa. Debaixo d’água ou na imensidão do mar, os planos geralmente mais abertos traz a protagonista a sensação de liberdade, que é constata com a trilha sonora enervante do casal Evgueni e Sacha Galperine, é perfeita já que Julija deixa claro que ama mergulhar, mas odeia caçar, justamente Murinas.
Mas há dois elementos a se destacar também: o primeiro é o enfoque que a diretora da no corpo da protagonista, nunca com o intuito de sexualizar a personagem, mas sim para crítica o machismo e ao patriarcado, tanto pelo pai e por sua mãe, que mesmo de maiô é sempre apontada por estar nua. Já o segundo é justamente a troca dos olhares entre Julija, Nela e Javier, que apenas nesse sutil gesto, passam inúmeras informações e sentimentos entre eles. E nesse caso, deixarei para o leitor que assistiu ao longa, o óbvio passado entre Nela e Javier, e que mexe com Julija.
E por mais que a tensão sexual seja um dos elementos mais evidente através da narrativa do longa, este enfoque está sempre relacionado à relação de poder que envolve todos os personagens da trama. Se Julija enxerga Javier como um possível “salvador” de sua vida aprisionada, se Nela suporta o relacionamento tóxico do marido e se Ante trata mal sua família, em detrimento do seu desesperado desejo que seu amigo compre o terreno para salvar sua vida, tudo se dá porque Javier é bastante rico. E isso contrapõe a figura paterna da protagonista, acionando o gatilho da autodescoberta e o seu lugar no mundo.
Mas a diretora é brilhantemente sagaz. Como já dito anteriormente, toda a narrativa e conflito é na perspectiva de Julija. E ao desenvolver essa história, a cineasta subverte a trama, realçando a percepção do que acompanhamos, e que sempre foi através do olhar da protagonista. O que me remete a uma das formas de desfechos que Robert Mckee propõe em seu célebre livro Story: “Concluir o arco do protagonista, dando o que o espectador deseja, mas não da maneira que imagina”. E a escolha da última cena não poderia ter sido mais adequada.
Murina é um longa que não tem a intenção de revolucionar as tramas “Coming of Age”, mas em seu primeiro longa, a diretora Antoneta Alamak Kusijanovoic, faz jus ao prêmio que ganhou em Cannes. O filme, riquíssimo em metáforas, utiliza a mise em scène de forma que potencializa a narrativa e todos os temas que são abordados de maneira precisa. Mas, se em sua primeira película podemos enxergar tamanho talento na direção, definitivamente, a cineasta é mais uma realizadora que devemos ficar de olho nos seus próximos projetos.
Murina esteve em cartaz na 45° Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.