Matrix Ressurections (Matrix Ressurections, 2021) de Lana Wachowski
Assistir Matrix Ressurections foi uma trajetória. De início que parece nos levar a um caminho, dobrando para uma estrada que atiça nossa curiosidade, passando por uma desconstrução da trilogia original, encontramos uma sutileza no saudosismo não abordada por nenhuma dessas novas séries de releituras. Assim, posso dizer que o filme cria uma reviravolta que grita aos mais altos volumes possíveis: ESTA É LANA WACHOWSKI. A obra da realizadora consegue tirar de suas próprias costas a responsabilidade de ser “mais um filme da série Matrix” e nos apresenta um filme multi-gênero, híbrido, aberto a diversão e à seriedade – algo tão potente quanto as práticas de liberdade que, imagino, a diretora busca para sua própria vida. É como se o filme por todo o tempo trocasse de pele: em princípio, parece ser uma releitura do original, mas se transforma em uma comédia, depois em um drama e por fim, um romance de ficção científica (é isso mesmo), salpicado com elementos filosóficos próprios à série. Na verdade, o filme busca se desprender o tempo todo de sua própria história, do mito que ele mesmo criou para si e construir uma nova roupagem, tão profunda quanto seu primeiro filme e ao mesmo tempo, tão desprendida de se tornar um símbolo ressonante. E a cineasta consegue fazer isso com sucesso.
Thomas Anderson (Keanu Reeves) é um designer de jogos de sucesso. A trilogia de jogos que criou revolucionou a indústria de games, o fez ficar rico, e ser reconhecido em seu meio. Sócio de uma empresa produtora de jogos, Thomas ainda assim é assolado por memórias não vividas e impulsos que o faz questionar sua realidade, misturando sua vida com a ficção que projetou em seus jogos (ou seria o contrário?). Sem esquecer de visitar sempre seu analista (Neil Patrick Harris) para assegurar seu controle mental. Isso mesmo, controle, mas quem controla o quê? Você pode se perguntar. É quando as ações de Bugs (Jessica Henwick, excelente revelação), numa busca infindável pelo propósito da vida, ecoam no mundo de Thomas e aprofundam seus questionamentos sobre sua realidade.
O plot inicial do filme busca nos conduzir de volta a Matrix. Nos aprofundamos na normalidade, nas formas de controle, no poder que fazem os personagens de Neo e Trinity estarem próximos e longe ao mesmo tempo e, além disso, vivos. As estratégias narrativas do roteiro nos apresentam de forma pitoresca a desconstrução da seriedade que eram os debates do porquê do sucesso da antiga trilogia – esta sendo ironicamente representada como um jogo de vídeo game. Dessa forma sutil, Wachowski nos faz aceitar que o que era antigo está agora despido, desavergonhado, em seu estado puro – em uma cena, parece até mesmo que ela roteirizou as negociações com a própria Warner Bros. sobre a continuação da série de filmes – e assim, ela tem a possibilidade de criar uma nova roupagem para o filme. Essa estratégia deve resultar em uma polêmica para com os fãs mais conservadores da trilogia, posto que no fim das contas, a experiência desse novo Matrix é a experiência da libertação, com a adesão da fluidez de gêneros cinematográficos em seu tom. Claramente um acerto, depois dos dois últimos filmes não tenham atingido seu real potencial – principalmente a primeira continuação.
Ao invés da pureza do tom distópico e da ficção científica ciberpunk que a primeira trilogia traz em seu DNA, neste novo capítulo observa-se uma fluidez de tons que renega um único gênero ao filme . É uma ficção-científica, com tons de comédia, de romance e de drama filosófico e existencial que conduzem a estética da obra. Essa noção é dominada pela diretora que parece nos conduzir pelo seu próprio mundo: um mundo de luta por liberdades que confronta as normalidades, as certezas e purezas que nos fazem baixar a cabeça para o controle e a disciplina que o poder impõe. Busca-se permitir-se fluir, nem que seja no mínimo espaço, nas mínimas brechas possíveis na indústria cinematográfica da cultura pop estadunidense. Um grande exemplo disso é a incessante problematização do binarismo, que nem tudo é uma escolha entre a pílula azul e a pílula vermelha e nem todo vilão tem apenas o papel de destruir o herói. Lana segura em nossas mãos e nos leva a uma grande transformação de redescoberta de si mesmo vivida por Thomas/Neo e Tiffany/Trinity, assim como ela mesma se transformou.
O filme dialoga bem com a contemporaneidade e seus excessos. Por vezes, percebemos que a diretora quis usar de toda linguagem figurativa da ironia e da metáfora para cutucar algumas obsessões que a cultura pop. Por exemplo, ela usa da infantilidade de alguns personagens como forma de ridicularizar como se criam histórias e como se avalia o interesse do público. Uma outra observação, essa já metafórica, diz respeito aos bots e como eles são usados em prol da violência. Tudo isso muito bem costurados. Mas isso não quer dizer que o filme seja as mil maravilhas. Há a possibilidade de interpretar que, apesar do discurso libertário, o filme continua preso às amarras da indústria cultural, seja na estética seja na forma liberal de vender sua filosofia. Por vários momentos, há debates sobre como o sistema se apropriou do discurso da primeira trilogia, sendo que este produz mais discursos que serão apropriados pelo mesmo sistema. E isso cai no mesmo conto já debatido pelos filósofos da indústria cultural que ecoam e de vez em quando aparecem nos discursos das obras de Wachowski: tudo o que é produzido com teor revolucionário nos meios da indústria cultural é apropriado pelo sistema. Um assunto que se torna um espelho sem fim, mas, quem sabe no fundo esse espelho possa ser fluido, como no longa.
Porém, se seguirmos a estratégia da diretora em falar de si através da cultura pop, de mostrar como sua transformação não é apenas um evento mas uma luta cotidiana, talvez consigamos não nos alienar totalmente à Matrix, uma vez que em tempos de dominação cultural, consigamos ter uma pequena noção de como os discursos políticos de um falso engajamento, um falso empoderamento e uma falsa representatividade pode ser sutilmente desmascarado pela própria contradição que o mercado da indústria cultural não cuida em mascarar. Em tempos de aracnídeos que nos tiram as opções que fazem a democracia, há discursos no âmago da indústria cultural que nos possibilitam alguma luz, exatamente na contradição que abre brechas de sensatez em um mundo refugiado na ilusão do gozo. Não podemos nos contentar com laboratórios de plantinhas… precisamos despertar mentes – e essa última frase você só irá entender em sua completude após assistir a Matrix Ressurections.
Multi-gênero, Matrix Ressurections arrisca e acerta ao revisitar, reverenciar e auto referenciar sua saga, e se torna naturalmente o filme mais pessoal de Lana Wachowski.