“Está tudo bem, Anne,” diz Anthony (Anthony Hopkins) para a sua filha (Olivia Colman). De olhos tristes, ela carrega um sorriso travado, demonstra estar de coração apertado e alma desolada, além de carregar o mundo nas costas ao não ter respostas para se decidir sobre o que fazer com seu pai, mesmo sabendo que se trata de um caminho sem volta. O drama em questão, o conflito entre pai e filha. Acometido de lapsos de memória, o idoso recusa toda a ajuda de sua filha à medida que envelhece e piora de saúde, é o foco narrativo de Meu Pai (The Father, 2020) de Florian Zeller.
Obra poderosa e capaz de arrancar lágrimas genuínas até de uma rocha sem alma, o filme se baseia na própria peça de teatro do diretor, agora adaptado ao Cinema a quatro mãos, com a parceria premiada de Christopher Hampton (Oscar de roteiro adaptado por Ligações Perigosas, 1988; e dono de outra indicação por Desejo e Reparação, 2007).
Diretor estreante em longa-metragem, Florian Zeller – autor de roteiros bem sucedidos como O que eu fiz para merecer tudo isso? (2014); A Viagem de Meu Pai (2015); e A Outra Mulher (2018) – é pura sensibilidade para nos guiar por um caminho de puro aperto no peito. E colhe seus louros na temporada de premiação com 21 prêmios internacionais e outras 129 nomeações, incluindo aqui as quatro do Globo de Ouro (melhor filme/drama, roteiro, ator/drama e atriz coadjuvante), seis no BAFTA (incluindo melhor filme, melhor filme britânico, diretor e ator), duas no SAG (ator e atriz coadjuvante) e outras seis no Oscar (melhor filme, ator, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, montagem e desenho de produção/cenários).
Como acompanhamos a trama pela ótica do pai, ficamos à mercê de sua memória, que aos poucos vai por vezes se esvaindo, por vezes misturando os fatos, o tempo e as estações. Capturar pequenos detalhes dentro dessas piscadas narrativas vai te guiar melhor pelos acontecimentos de forma sutil, percebendo detalhes do figurino aos cenários, dos personagens e o que as cercam dentro do espaço e tempo praticado. Juntar as peças desse quebra-cabeça de sentimentos fortes e duros, mas que enche o coração de uma satisfação cinematográfica completa.
A realidade se revela em detalhes comoventes, diante de uma condição humana que foge do nosso controle. A luta contra o inevitável, e o convívio entre pai e filha nos presenteia com uma entrega dupla de Anthony Hopkins e Olivia Colman. O veterano ator, premiado com o Oscar por O Silêncio dos Inocentes (1991), volta ao topo com uma performance capaz de parar o tempo, ao mesmo tempo em que nossos olhos transbordam de lágrimas, fazendo a gente terminar o filme voltando a ser criança e chamando a mamãe. Acredite. Ao seu lado, uma igualmente potente Olivia Colman (Oscar por sua atuação em A Favorita, 2018), na pele de uma filha que junta os cacos (literalmente) de sua vida, enquanto tenta se equilibrar em seus sentimentos mais verdadeiros, mesmo que estejam perdidos dentro de tanto sofrimento.
E saiba que o trágico retrato de um senhor que tenta desesperadamente se agarrar em fagulhas de sua memória, não é um mero filme de dúvida entre sua emitente demência ou não. É uma viagem sem volta. Que dói, mas satisfaz diante de tamanha perfeição dramática, com direção precisa de atores – até os coadjuvantes completam algo sem roubar o espaço da dupla Hopkins-Colman – em um roteiro que te põe no meio dos fragmentos da memória do protagonista, e carrega consigo uma montagem avassaladora.
Um mínimo erro em qualquer um dos detalhes encaminharia Meu Pai ao desastre. Hopkins poderia se entregar ao exagero e Colman ao dramalhão, longe disso, acertam no tom, em uníssono. O roteiro, se guiado pela doença, suplicaria um choro sem emoção, pelo contrário, temos um carrossel de emoções verdadeiras, que vai revelando a verdade aos poucos. Ao mesmo ponto que, se houvesse uma montagem batida em uma colagem de idas até o fim, de forma previsível, até subirem os créditos temperados com uma música melosa, somos tragados para uma série de acontecimentos perdidos no tempo do protagonista, grande acerto. E exatamente na confluência desses acertos nos coloca diante de uma obra para se guardar na mente e coração. Até o fim dos nossos dias.