Medida Provisória (Idem, Brasil, 2022) de Lázaro Ramos
“Será que a gente nota quando a história está acontecendo?”, “Como a gente não viu isso?”, “Como é que rimos disso?”. Essas são algumas das várias indagações, reflexões e paralelos que o longa Medida Provisória, estreia da direção de Lázaro Ramos, nos faz ao decorrer da distopia em que nosso País passa a conviver na trama. Pois, apesar de ser uma obra de ficção, sua mensagem e analogias são tão poderosas com o presente e o passado do Brasil, que é impossível ficar indiferente com o que estamos testemunhando.
O longa é uma adaptação do texto teatral “Namíbia, Não!” de Aldri Anunciação, o qual Lázaro dirigiu para o teatro em 2011. A história se passa em um futuro próximo quando o Governo brasileiro decretou, em nome da reparação histórica e social pelo passado escravocrata, a “Medida Provisória nº 1888” (referência a Lei Áurea), instituindo assim o Ministério da Devolução. Ela estabelece que todos com “melanina acentuada” (como agora são chamados os negros) retornem à África. O que no começo surge como algo voluntário e com pouca adesão se torna obrigatória, gerando uma verdadeira caça à comunidade negra que passa a viver uma distopia e uma luta por suas liberdades e suas vidas.
No longa acompanhamos três personagens centrais: o advogado Antônio (Alfred Enoch, conhecido pelos filmes de Harry Potter e a série How To Get Away With Murder), um homem que preza pela paz e pelas leis, Capitu (Taís Araújo, de Pixinguinha – Um Homem Carinhoso, 2021), médica e namorada de Antônio, e André, o primo jornalista de Antônio, (representado por Seu Jorge, músico e ator, que recentemente viveu no cinema Marighella), um homem sem papas na língua e que serve de alívio cômico na película. É por meio deles que enxergamos a sociedade brasileira, pouco a pouco, se tornando uma distopia.
Antes de mais nada, escrever essa crítica é um grande desafio pois entendo que não estou no meu lugar de fala. Apenas analiso a obra pelo que ela é. Gosto de pontuar isso, pois sei que apesar do longa ser um dos mais criativos e relevantes que vi do cinema brasileiro nos últimos anos, este contém algumas “falhas” no meu ponto de vista, apesar de que para alguns são extremamente necessárias para sua mensagem.
Lázaro Ramos é um artista, e um ativista político com uma carreira consolidada em nosso país, seja na TV ou no cinema, atuando em papéis como em “O Homem que Copiava”, “Madame Satã” e “Ó Pai, Ó”. Mesmo com seu prestígio, ter a aprovação dos atuais órgãos governamentais para passar o filme, que desde 2020 já estava ganhando reconhecimento e prêmios em festivais mundo a fora, não foi fácil. Isso demonstra a resistência que o atual governo tem em ser contrariado, o que de certa maneira beneficia a narrativa do longa, assim como em Marighella (2021).
Sua estreia na direção é acertada. O roteiro co-escrito com Lusa Silvestre começa já preparando o território e o clima distópico aos poucos, quando somos apresentados a Antônio pedindo a reparação histórica nos tribunais. Em seguida o filme corta para a cena com a idosa Elenita (Dona Diva), que seria a primeira a receber o primeiro benefício dessa reparação, contudo ela não recebe nenhum centavo. Aos poucos, o Governo vai criando um terreno para seu plano argiloso que irá gerar o puro caos aos negros. A aprovação da votação da medida é uma clara alusão ao Impeachment da Presidenta Dilma, uma sacada sagaz porém estranha do roteiro (ninguém sabia da votação? Nem Antônio?).
A fotografia de Adrian Teijido e a direção de arte de Tiago Marques Teixeira contrastam entre tons quentes, dos personagens principais e a comunidade negra, e os tons frios daqueles que os caçam. Inclusive, o fardamento dos guardas que prendem os “melaninas acentuadas”, são aterrorizantes, com seus rostos completamente brancos, aumentando esse contraste.
A trilha sonora de Plínio Profeta, Rincon Sapiência e Kiko de Souza orbita entre a brasilidade e o terror. As músicas originais vão de Elza Soares, uma versão de “Preciso me Encontrar”, de Cartola, e entre outros músicos que encaixam perfeitamente na mensagem que longa quer passar.
Mensagem essa de pacifismo e união, que me parece dúbia (como disse, não estou no meu lugar de fala e comentarei no decorrer da crítica). A narrativa escolhe dividir o núcleo de personagens principais em dois. Antônio e André ficam presos em seu apartamento, já que os guardas não podem invadir. Enquanto Capitu fica em “AfroBunker” (uma referência aos Quilombos de antigamente). Tal dualidade potencializa o íntimo (apartamento) e o macro (os “AfroBunker”), mas não consegue mostrar o potencial de ambos os locais.
Por exemplo, Antônio precisa de insulina e, em determinado momento, o roteiro parece esquecer desse fato. Enquanto nos “AfroBunker” nunca é mostrado seu funcionamento por completo. Por falar do Bunker, inúmeras figuras negras conhecidas fazem participação no longa, como a própria Aldri Anunciação, Emicida, Rincon Sapiência, Flávio Bauraqui. O longa de Lázaro, apesar de ser da Globo Filmes, se comporta como um filme de guerrilha.
Porém, o maior problema mora em seus antagonistas que infelizmente são rasos. O Ministro da Devolução e Isabel (Adriana Esteves), que é a responsável por um dos núcleos de devolução são muito caricatos. Talvez seja o propósito da obra retratar como nossos governantes são, entretanto, Dona Izildinha (Renata Sorrah) faz uma clássica “cidadã de bem” que é perfeitamente crível.
Mas também há pessoas brancas como Sarah (Mariana Xavier), namorada de André, e seu vizinho Kaito (Paulo Chun), que veem toda aquela situação como um completo absurdo. Porém, em determinado momento na história, um vídeo torna Antônio um símbolo de resistência pacífica. Não quero dizer que o longa não fosse todo sobre resistência, é que vemos o caminho e a mensagem do diretor mais evidente: o diálogo pela união e paz.
Na abertura do terceiro ato, um acontecimento espelhado acontece. O longa se torna mais teatral, mas a mensagem é: sem diálogo, somos apenas o espelho uns dos outros. Por mais funcional que seja quando tento pensar nesse segmento do longa, apesar do funcionamento narrativo, parece-me dúbio pois em toda a história do Brasil a relação negro e branco nunca foi espelhada e sim o contrário, que é evidenciado pelo longa na maior parte do tempo.
A conclusão nasce de um grito entalado na garganta por toda a história negra no país. Mas ao invés da catarse, o longa vai de encontro em uma resolução mais positiva, o que contrasta até um pouco com ele como um todo.
Medida Provisória é um filme extremamente pertinente e criativo. Uma distopia aterrorizante e que nos faz refletir muito sobre o racismo estrutural que nosso país convive há séculos. A estreia de Lázaro Ramos na direção é positiva, apesar dos deslizes. E com certeza o longa poderá se tornar um novo clássico do nosso cinema.