Cabeça de Nêgo (Idem, Brasil, 2021) de Déo Cardoso
A experiência de assistir ao primeiro filme de Déo Cardoso, me fez imediatamente pensar no cinema de Spike Lee. Por toda obra, observamos a linguagem das ruas, das comunidades, construírem a atmosfera do filme que dá o tom ao efeito de realidade que a narrativa nos apresenta. São sotaques, verbetes, expressões artísticas, pichações, arte urbana, a opção pela estética suja de um ambiente semi-abandonado e a própria postura dos atores que dão vida aos personagens no filme. Desde a primeira cena, onde o personagem Saulo (Lucas Limeira) está colando cartazes sobre um debate acerca da negritude vestindo o uniforme do colégio no qual aparece o lema de sua escola que tem a disciplina e a obediência como fundamento para o desenvolvimento, até a última sequência, com a ação da força policial e a reação dos estudantes, observamos a complexa relação de poder que enquadra debates fundamentais sobre a posição imposta aos negros, mulheres e a sujeitos de classes mais pobres no tecido social brasileiro. Exatamente como faz o cineasta estadunidense.
Poderoso, Cabeça de Nêgo é um filme cearense que tem como fio condutor a ocupação de uma escola por um estudante que incomodou professores, gestores e políticos da cidade. Essa premissa é uma Caixa de Pandora que fez emergir à luz dos debates as estruturas dos microcosmos do poder que permeiam a nossa realidade sócio política. Déo Cardoso, com o sucesso do filme em vários festivais pelos quais passou, por muitas vezes foi comparado – e de forma extremamente positiva – com o gigante Spike Lee. Como apontei no início, nada mais honesto!
Porém, o diretor tem sua própria voz, e sua própria forma de perceber e filmar o real, não se apresentando, através do filme, sob a postura de um intelectual que vai gerar o debate com suas ideias e percepções do funcionamento da realidade através de problematizações. Isso não se faz necessário, uma vez que uma das mais belas funções da arte é algo próximo da própria filosofia: funcionar como um bisturi que vai abrir um corpo e através de uma estética arrojada e corajosa dar luz às ranhuras de nossa realidade – seja através de uma pegada neorrealista, cinemanovista, surrealista, ou mesmo com os vários gêneros que assim dão condições.
A partir disso, se fez impossível não aproximar o discurso do filme, a narrativa de suas imagens e de seu ritmo, aos debates no meio acadêmico e dos movimentos sociais em pauta. Recheado por referências dos Panteras Negras à Angela Davis, de Marielle Franco à Bell Hooks, percebemos os contornos e traços de Achiles Mbembe, Frantz Fanon, e Sueli Carneiro (como não pensar nela ao ver a personagem da Professora Elaine, vivida por Jéssica Ellen). Assim como os traços de pensadores já clássicos, como Michel Foucault e Gilles Deleuze, mas também, o contemporâneo Jacques Ranciere. O ato polêmico e dissonante de Saulo, ao ocupar sua cadeira e desobedecer a ordem do professor, do coordenador, do gestor, do segurança, dos políticos e, inclusive, do ativista negro que fica andando e jantando com políticos, fez com que seus colegas, independente se são amigos ou não, se engajarem politicamente no assunto no qual todos percebem ser maior do que tudo: o descaso com a educação e com eles próprios.
A obra – atualíssima e obrigatória – abre com um menino negro de Black Power usando um uniforme que vangloria a disciplina fazendo um ato indisciplinar: pregando cartazes que vão levar a questionar o próprio poder da disciplina. Michel Foucault já dizia que a disciplina é uma tecnologia e uma estratégia das forças do poder e, questioná-la, buscar alternativas a ela, historicamente, foram formas de resistir a toda uma microfísica que formam o poder. Aliado a isso, Jacques Ranciere traz a leitura que o dissenso e a polêmica são estratégias de resistência que são capazes de quebrar as principais membranas que protegem as células do poder, do controle, das disciplinas, e assim possibilitam a formação de novas formas de subjetivação, na luta contra as estruturas que dão condições de existência do poder e assim, fazer emergir sujeitos políticos de resistência que possuem a oportunidade contemporânea para criar alternativas àquela realidade.
O que o filme de Déo Cardoso, assim como Faça a Coisa Certa (1989) de Spike Lee fez à sua época e vale até hoje, traz essa narrativa audiovisual de uma camada da sociedade que, amassados por essas tecnologias do poder, e oprimidos pelas forças de camadas dominantes que estão normalizadas em suas liberdades de forças, criam formas de produzir o dissenso: primeiro como um ato polêmico; depois com um chamado à realidade. O resultado, por fim, se dá com a ação política. Essa obra é uma materialização que apresenta – nada de representar aqui – uma ligação entre a arte e o real em que vivemos, que faz com que este filme, chamado Cabeça de Nêgo, tenha uma vida mais longa do que o breve sopro que os filmes nacionais. E, principalmente, os nossos cearenses possuem no ressoo na sociedade – infelizmente. Seu eco vai além e, possivelmente será revisitado no futuro e, se por acaso sumir, pode ter certeza que ele será reencontrado, e voltará a assombrar as estruturas racistas que este país insiste em fazer persistir.