A Jangada de Welles (2022) de Firmino Holanda e Petrus Cariry
Como cinéfilo cearense, uma das histórias que mais me tomava a atenção era a de que Orson Welles, um dos maiores nomes do cinema mundial esteve em minhas terras para gravar um filme sobre meus conterrâneos. Quando jovem, foi difícil ter acesso a essa obra. Apenas depois de mais velho, eu pude testemunhar as belíssimas e comoventes imagens registradas pelo gênio estadunidense, sobre um povo que lutava para viver e que decidiram navegar os verdes mares para exigir direitos a um ditador que estava muito distante deles. Aquele olhar de um projeto que Welles registrou e não pode concluir como desejava despertaram em mim algo no vazio que era minha relação com a história de minha própria terra, de meus próprios conterrâneos.
Com a Jangada de Welles (2019), Firmino Holanda e Petrus Cariry nos conduzem, a partir do evento que fora a semana em que Orson Welles esteve no Ceará filmando jangadeiros às marés do acontecimento histórico que é a luta por sobrevivência e trabalho de uma camada da sociedade que a quase 100 anos está sendo apagada pela cruel especulação imobiliária, do mercado aliado ao poder público, colocando essa população em um estado de quase miséria.
Ao contrário do que se pode pensar, o filme dos diretores cearenses não é apenas uma ode a um gênio que viu em nosso povo um motivo para, de fato, filmar o Brasil. Welles veio no início dos anos 1940 sob o investimento de Nelson Rockfeller para criar um produto que orgulhasse o povo latino americano de sua própria cultura, constituindo um material propagandístico capaz de aproximar a América Latina dos Estados Unidos, que estavam ameaçados pela influência nazista nos governos da região. Incomodado com isso, Welles viria ao Rio de Janeiro para filmar o carnaval. Porém, ao descobrir a história de quatro jangadeiros que sairiam da praia do Mucuripe, em Fortaleza, em direção ao Rio de Janeiro, então Capital da República, para levar propostas de políticas sociais trabalhistas exigidas pelos pescadores do nordeste brasileiro, o diretor encontrou um sentido para sua obra. Não era mais apenas uma propaganda desalmada, mas sim um filme digno das aspirações de Eisentein com seu “Viva México!”, que o filme de Holanda e Cariry lembram e referenciam com maestria.
Iniciando exatamente como a jornada proposta por Welles, o documentário pega em nossas mãos para dizer que vai contar a história da passagem do diretor estadunidense nas terras e mares alencarinos. E ele de fato o faz! Mas como o gênero documentário nos possibilita inúmeros elementos, principalmente quando historicamente temos o cinema soviético, a nouvelle vague e o cinema novo como referência – principalmente de Firmino Holanda – o caminho que o filme constrói para nós é de uma engenhosidade delicada e dilacerante. A jangada atravessa a empolgação que é ser palco para uma ideia de um cineasta que busca construir sua narrativa sobre um povo que luta por vida digna, para chega a mostrar o quanto o poder aproveitou os feitos desse povo como símbolo patriótico e depois os marginalizaram, empurrando-os cada vez mais para longe do mar, de seu local de trabalho, de sua vida em sociedade.
Imagens dialéticas constituem a narrativa que explora a história de um povo jangadeiro a medida que desenvolve o fio condutor da visão de Welles. A medida que há conflito no passado, mais se constitui a realidade de nossa contemporaneidade. O filme se produz a partir de Welles, mas se constitui de acordo com a história que vivenciada pelos jangadeiros, e essa foi uma feliz escolha narrativa dos diretores – o que me fez muito lembrar dos documentários de Agnés Varda. Percebe-se o conhecimento e o talento da direção ao aplicar de maneira original a estética da fome glauberiana como o recurso estilístico e ideológico de enfrentamento político do filme.
Dessa forma, a obra de Firmino Holanda e Petrus Cariry se posiciona em raízes fortes e mantém suas estruturas não apenas como uma política rasa, mas combativa ao lado do povo jangadeiro, assim como Welles parecia estar. Porém, estruturalmente, se há algum problema no filme, este está numa queda de ritmo ocasionado, talvez, pela inserção de um ator simulando Welles, com um estranho e caricato sotaque. Mas um pequeno deslize não afeta a experiência que é vivenciar a luta de um povo que o poder de nosso estado confronta e esmaga a cada movimento que os fazem se deslocar para longe de suas raízes. O mar, antes local de colheita de alimento, cada vez mais, se torna um cartão postal que recebe os esgotos da cidade de Fortaleza e de seus arranhas céus, que compram a vista para o imenso infinito desafiado pelos antigos jangadeiros, que o dominavam e o conheciam tão bem. Convido a todos que amam o Cinema, a História, a História do Cinema, e o Ceará (ou tudo junto), a embarcar e navegar nessa grande (e necessária) obra.