A Noite do Fogo (Noche de Fuego, México/Alemanha/Brasil/Catar, 2021) de Tatiana Huezo
Em A Noite do Fogo, longa que recebeu a Menção Especial e o Prêmio de Melhor Desenho de Som na Mostra Un Certain Regard, no Festival de Cannes de 2021. Além de ser a escolha do México para representar o país ao Prêmio de Melhor Longa Internacional para o Oscar de 2022. A Diretora Tatiana Huezo, opta pelo sutil e o evidente. Pois ao escolher contar sua trama através de uma espécie de “fábula”, focado na vida de três garotas, da infância a adolescência, com elementos “enigmáticos”, para o espectador. Toda a beleza e o completo e terror está estampado na tela.
Por exemplo, em momento algum a cineasta nos explica a situação que o México vive a anos. Com milícias de narcotraficantes que oprimem povoados, enquanto o governo pouco faz pelos seus cidadãos. O que poderia ser considerado um spoiler, definitivamente não é. Pois tudo está escancarado na narrativa. E na escolha de acompanharmos a amizade e o crescimento na perspectiva de três garotas. A sutileza da película é evidenciada, pois potencializa ao mesmo tempo que o belo e o medo se misturam. Não há necessidade de explicar nada, pois o sentimento causado dessa dualidade é tão poderoso, que as respostas estão nas próprias perguntas.
Baseado no livro: “Reze pela as Mulheres Roubadas”, da escritora Jennifer Clement. A narrativa gira em torno de um pequeno povoado situado nas montanhas mexicanas, praticamente isolados do resto do mundo e em constante medo que os cerca. E acompanhamos a infância e adolescência de Ana, María e Paula. Três amigas, a qual tem uma conexão mística entre elas, vivenciamos suas pacatas vidas, enquanto elas tentam entender o mundo que as cerca e os esforços e escolhas de suas mães para as protegerem de um eventual destino.
Várias perguntas surgem ao espectador enquanto durante todo o longa: Por que as garotas são obrigadas por suas Mães a terem corte de cabelo sempre curtos? Qual o motivo dos desaparecimentos de tantas famílias? O que de fato é a plantação a qual o povoado é praticamente obrigado a trabalhar para o seu sustento? Por que os professores nunca concluem o ano letivo? Esses “enigmas”, que permeiam a narrativa, não são respondidos, já que as respostas estão a todo tempo em tela. A real pergunta que Huezo, implicitamente, nos faz durante todo o longa é: Por que ninguém toma nenhuma atitude sabendo a realidade dessas pessoas?
A fotografia de Dariela Ludlow e o design de produção de Oscar Tello são perfeitos. Pois a beleza das montanhas, que vão de grandes planos gerais a planos detalhes, mostrando o quão bonito é a região, contrasta com o quão a imensa pobreza e a exploração ao qual o povoado está inserido. O design sonoro de Lena Esquenazi, está sempre presente em todo o longa. A natureza permeia toda a narrativa, sempre com sons diegéticos, que ao mesmo tempo causa paz, sempre deixa os personagens e o espectador em constante alerta, pois o perigo é constante.
Mas é na construção da “fábula” das três garotas a qual acompanhamos a transição da infância a adolescência, é o olhar que tanto nos conforta e nos impacta ao mesmo tempo. A diretora utiliza da própria cultura mexicana para criar um elo místico que une as personagens. As garotas, sem mesmo olhar, conseguem adivinhar, imitar gestos e sentir o que cada uma vive. Essa conexão é tão forte, tanto para felicidade e dor. Ana e María, tem “dom”, mais forte entre elas, não que Paula, também não tenha. Mas é uma escolha pensada pela cineasta em evidenciar o carinho das duas personagens pelo povoado. Enquanto a outra quer tanto sair daquele terror. Característica que é marcada geralmente pelas cores de suas blusas.
Na transição da infância para adolescência fica evidente que os “enigmas” criados, vão perdendo as aspas, tanto para as personagens e para o espectador. Inclusive, uma das personagens mais interessantes do filme é justamente Nina, a mãe de Ana. O fato de não querer tocar em certos assuntos e fazer escolhas tão estranhas para vida. E na verdade, o profundo amor diante o medo, que não encontra palavras para explicar o que sente e vive. E outro personagem que podemos destacar é Miguel, que junto com as garotas também acompanhamos o seu crescimento e os caminhos que a vida o leva, podemos traçar paralelos com a vida do nosso país.
Não é difícil perceber qual será o desfecho que o longa terá. Inclusive, o Fogo também é um elemento que se repete duas vezes durante o longa, marcando a dor e recomeço. E o uso recorrente da palavra “fábula” é porque de fato temos sim um tom tanto místico e principalmente uma “moral” para essa história. Sendo que ambas as palavras em aspas (propositalmente), representa justamente a dura realidade que quebra a magia e o imoral que o povo mexicano convive.
A Noite do Fogo é um filme difícil. Pois Tatiana Huezo tem completo domínio entre transitar na beleza e terror. Sutis constantes marcam a história. Enigmas são evidentes. E a diretora, que por sinal tinha dirigido somente documentários, até finalmente debutar em um longa narrativo. Consegue na última cena, trazer toda essa dualidade à tona. O que é impossível não nos emociona.