Bacurau (2019) de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
“Daqui alguns anos…” Esse é o letreiro que aparece no canto da tela enquanto vemos uma caminhonete que transporta água a toda velocidade em uma estrada de terra que leva ao pequeno povoado de Bacurau (nome de uma ave típica dessa região nordestina). Logo em seguida, a caminhonete passa por um caminhão tombado com vários caixões no chão, os quais são destruídos enquanto o veículo passa.
Esses são um dos vários momentos estranhos e metafóricos que os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles nos convidam a assistir em sua nova obra cinematográfica (a terceira de Mendonça e a primeira de Dorneles, sendo este parceiro de Kleber no designer de produção do longa Aquarius). Bacurau vai construindo progressivamente suas alegorias através de sua narrativa que dialoga com vários gêneros. E como todo bom filme, inúmeros elementos vão dando ao espectador momentos para reflexão, porém, o discurso da dupla é claro e vai se revelando de maneira impactante. “Daqui alguns anos…” não necessariamente aponta para o futuro no nosso país, mas retrata o presente ou melhor, toda nossa história.
O povoado é um microcosmo do Brasil, mais precisamente da região Nordeste, que vive o luto de perder dona Carmelita (Lia de Itamaracá), uma ilustre moradora querida por todos. Em seu velório todos do povoado se fazem presente, incluindo a visita de parentes distantes, como por exemplo Teresa (Barbara Colen), neta de Carmelita que retorna ao povoado trazendo medicamentos para região. Mas é depois de seu enterro que a pacata cidade começa a passar por estranhos acontecimentos, sendo o principal deles o desaparecimento da comunidade do mapa.
Paulatinamente a narrativa vai apresentando suas facetas. Aos poucos Bacurau começa sofrer ataques de um inimigo que demora a se mostrar, mas que os ronda. Muita dessa tensão é auxiliada pela trilha sonora de um violeiro e pelos sintetizadores inquietantes de John Carpenter. E quando o inimigo se revela, nós os reconhecemos. Não há alegoria mais direta e representativa aos momentos do país que os antagonistas apresentados no filme. Os diretores fazem uma crítica ferrenha ao sul/sudeste do Brasil, à política e à presença norte americana no país.
É interessante perceber que Mendonça continua trabalhando os elementos de sua filmografia: percebemos isso através dos vários núcleos de personagens, assim como em O Som ao Redor e a preservação da memória e a resistência histórica como em Aquarius. Contudo aqui a dupla vai muito mais além. A película mistura diversos gêneros como os de faroeste, evocando o sertão do Cinema Novo (influenciado por Glauber Rocha), uma ficção científica, com aparições de drones em formato de OVNI, thrillers e violência verborrágica (que remete inclusive ao próprio Carpenter). Entretanto, por mais estranho que possa ser o contraste inicial do sertão nordestino com todos esses gêneros, a narrativa encontra uma maneira orgânica para transitar nessa diversidade. Ajudada pela excelente fotografia de Pedro Sotero (parceiro de longa data dos diretores) que consegue entregar desde paisagens lindas a planos mais fechados, além dos zoons in, característicos na filmografia de Kleber.
Filme essencialmente de resistência, Bacurau ora é representado pela própria comunidade, ora representado por Lunga (Silveiro Perreira), um guerrilheiro filho daquela terra. Outra personagem que vale a pena ressaltar é a médica Domingas (Sônia Braga em mais uma ótima atuação), que além de seu temperamento forte, é bem direta quando explica à comunidade que o resto do país é drogado por um forte inibidor de humor em forma de supositório, crítica nada sutil ao momento vivido em nosso país. O terceiro ato confirma essa resistência evidenciando uma violência crua à la Tarantino/Carpenter. Se o antagonista liderado por Michael (Udo Kier) nos chama de selvagens. Bacurau responde utilizando da mesma violência como resposta. Um grito que nos diz que não vamos ser extintos sem lutar!
Bacurau é um filme com o DNA brasileiro mais pulsante possível. Seu reconhecimento em Cannes e ao redor do mundo mostra a força que nosso cinema e arte sempre teve, tem e para sempre terá. Um grito de uma ave que se recusa a ser esquecida.