Abril Despedaçado (2001, Brasil) de Walter Salles
Um garoto, um menino, caminha numa estrada de terra. O que levou ele até ali? Para onde ele vai, e porque vai?
Seu nome é Pacu, e ele está atormentado porque não lembra de uma história. Uma história que ele leu num livro, mesmo não sabendo ler. Seu pai lhe tomara o livro. Sem ver as imagens do livro, ele não consegue lembrar a história. Além disso, uma outra história está mais viva em sua mente, dificultando-o de lembra a história do livro. É a história que o levou até aquela estrada e que determinará o fim de sua vida.
A história que o garoto conta, neste belíssimo filme de Walter Salles, é sobre sua família, o destino de seu irmão e uma tradição que aos olhos de uma criança é irracional e não tem porque se ser seguida.
No começo da narração, ele fala do trabalho no engenho, do qual todos da família são obrigados a participar. A fazenda em que eles vivem é bem simples, rústica. Ela está localizada no Riacho das Almas. O local recebe esse nome por conta do riacho que secou, deixando só as almas dos familiares mortos. Segundo o menino, fica no meio do nada. A casa é pequena, e eles possuem apenas dois bois para mover o engenho e realizar os transportes para a cidade. A família é composta pelo menino, seu irmão, o pai e a mãe. Eles não possuem empregados.
Contudo, já teve uma época em que a família era grande e a fazenda era bonita, com vários animais e muitas terras para plantação, além de escravos para fazer o trabalho. A vida dessa família, família Breves, é inteiramente dedicada ao trabalho e em preservar a honra. Pacu e seu irmão Tonho não podem aproveitar a vida. São como os bois, devem trabalhar, rodar e rodar e nunca sair do lugar.
É mês de fevereiro. Pacu sonhou com o dia em que seu irmão mais velho havia sido assassinado por um membro da família Ferreira. A família está de luto por causa da morte do filho mais velho. Seu Breves, o pai da família, espera o sangue manchado na camisa do filho amarelar para mandar Tonho cumprir vingança.
O sangue vem a amarelar no mês de abril, mês em que Tonho tem que cumprir seu dever perante a família, mês em que ele terá sua vida despedaçada por causa dessa rixa com a família Ferreira. Na mesa do jantar, Seu Breves comunica que o sangue amarelou e que Tonho deve ir matar a pessoa que matou seu irmão no dia seguinte, antes do amanhecer. Pacu pede a Tonho que ele não vá e leva um tapa do pai.
O garoto sabe que o irmão pode não voltar vivo, que a vingança não trará o irmão assassinado de volta e que a preservação da honra que o pai tanto anseia não tem serventia alguma. Ele tem a visão de uma criança, uma visão mais simples e bela da vida. É o único que enxerga assim. Os outros não conseguem ver isso. Como o garoto diz, nessa luta de olho por olho, todo mundo acaba sego. Em terra de sego, quem tem um olho só, como Pacu, é doido, desacreditado. Contudo, o menino insiste em mostrar essa visão para o irmão Tonho. Já o pai mostra que o avô e os tios de Pacu morreram para defender a honra da família e que um dia pode ser a vez do garoto. Diz também que já cumpriu com sua obrigação e que não morreu porque Deus não quis.
Toda essa briga começou por questão de terra. Nessa discussão, um vai matando o outro, gerando mortes e mortes para as famílias envolvidas.
Tudo indicava que a história não ia mudar. A rixa entra as famílias ia continuar, e os Breves iam ter que trabalhar para viver até deixarem de existir. É quando Tonho está longe de casa, cumprido sua obrigação, que o fato que vai mudar o rumo da história acontece, que inclui dois artistas de circo no meio da história.
Depois de falar para Pacu que viu a moça na cidade, este pede para que ele lhe leve para o circo. Tonho afirma que o pai jamais deixará eles saírem. Então, a criança mostra mais uma vez sua excelente percepção de mundo afirmando que: “A gente é que nem os boi: roda, roda e nunca sai do lugar.”
Mais tarde, depois de anoitecer, Tonho resolve levar Pacu ao circo, escondido do pai. Circo, liberdade, criação, alegria. Elementos que se chocam frontalmente com o rude cotidiano de Tonho, um círculo vicioso de dor e tristeza ritmado pelo som melancólico do moinho de cana puxado por bois. A entrada de Clara na vida desses dois jovens começa a trazer algo novo. Após a apresentação do circo, Pacu e Tonho vão falar com Clara e Salustiano. É nesta cena que Tonho conhece Clara e Pacu recebe este nome. O garoto até então não tinha nome, pois não fora batizado. Ao voltarem para casa, eles são surpreendidos pela presença do pai. Este exige que Tonho tenha respeito aos mortos da casa e, quando Tonho responde ao pai, lhe manda calar a boca.
A partir daí, Tonho mostra que não é mais o mesmo. Desafia o pai, não o obedece, continuando a falar. O sentimento de liberdade começava a fazer parte de Tonho. Aos poucos o pensamento de Pacu passa para Tonho.
O filme também explica como funcionam as guerras entre famílias da região através de uma metáfora interessante: “Olha, é que nem duas cobra que eu vi brigando um dia desse. Uma mordeu o rabo de uma. A outra mordeu o rabo da uma. E morde o de uma, morde o da outra, foram se comendo, foram se comendo, até que um dia não restou mais nada. […]. É desse jeito que esse povo vai se acabar.”
A história mudava. Até os bois estavam fugindo das regras e do cotidiano daquela fazenda. Na manhã seguinte à ida ao circo, os Breves voltaram a trabalhar no engenho. Nessa cena, os bois resolvem parar de andar, assim parando a engrenagem maior que move todo o engenho. Os Breves deixam o trabalho, e os bois começam a andar sozinhos em volta do engenho, como se fossem livres e independentes, fazendo o que querem na hora que querem.
“Nessa casa, os morto é que comanda os vivo”.
Enquanto Tonho vai conhecendo novas experiências, a linguagem cinematográfica o acompanha, e mostra a roda da carroça andando, e Tonho gira Clara numa corda durante um dia inteiro. Mais uma vez a idéia de círculo mostra no filme que o tempo está passando e Tonho deixando de viver, como, também, os closes nas engrenagens do engenho fazem lembrar um relógio, e o balanço de Pacu o pendulo. E a história sertaneja de uma família matando a outra, seja o sangue amarelando ou não, em um círculo vicioso sem fim continua a girar…
O filme de Walter Salles é realmente mais maduro que Central do Brasil (1998). Contudo, o drama regional mostrou algumas falhas em relação à montagem, e a fotografia do sertão é um tanto exagerada. O elenco mostrou uma boa interpretação e foi muito bem escolhido, principalmente Rodrigo Santoro (o Tonho), José Dumont (o pai), e as participações de Gero Camilo e Wagner Moura. É um filme que conseguiu juntar a poesia ao cinema de uma forma extraordinariamente brilhante. E sim, soube tratar muito bem de várias temáticas, como o analfabetismo, o patriarcalismo, as guerras entre famílias no sertão nordestino, o circo no interior, dentre outras.
para tanto, o diretor precisou estudar as características das guerras entre famílias no Brasil. Esses conflitos, geralmente conduzidos por latifundiários, acabaram definindo as fronteiras de alguns territórios do sertão nordestino, como é o caso do Sertão dos Inhamuns, no Estado do Ceará, palco da guerra entre as famílias Montes e Feitosa na primeira metade do século passado. Por fim, a forma com a qual foi tratada a visão de mundo de uma criança como Pacu (Ravi Ramos Lacerda) foi o ponto máximo do filme.