Para iniciar este texto de crítica, preciso deixar alguns pontos claros. Sou completamente a favor da construção de um mercado que coopere com o fortalecimento da indústria cinematográfica brasileira. Para isso, é preciso existir uma heterogeneidade de filmes que possa atingir a grandes variedades de públicos. Não acho saudável esquecer que o cinema nasceu do entretenimento, da fuga para filmes que os operários, em seu tempo de folga e passeio nos nickellodeons de seus bairros com suas famílias, pagavam para assistir. E foi essa função escapista que deu fôlego para a emergência do cinema. Dito isso, justificando que compreendo que a linguagem popular, a forma de entretenimento e a busca da construção de um mercado que se fortaleça para fazer crescer mais a nossa indústria cinematográfica são elos importantes para o cinema, inicio esta crítica para refletir sobre o novo filme de Halder Gomes, Bem-Vinda a Quixeramobim.
Aimee (Monique Alfrandique), uma mulher de trinta e poucos anos, é herdeira de um empresário milionário envolvido em um caso de corrupção. Influencer e com muitos seguidores, os bens de sua família e seus são bloqueados pela Receita Federal. Forçada pela primeira vez a ficar sem o dinheiro do pai para se sustentar, Aimée terá que se refugiar na última propriedade da família que resta: uma fazenda em ruínas em Quixeramobim, no interior do Ceará. Na tentativa de vender a propriedade, mas com vergonha da nova realidade, inventa que irá tirar um “período sabático”, por um ano. Assim, terá que lidar com sua nova vida e sustentar a mentira nas redes sociais.
O diretor Halder Gomes já é um veterano no quesito de fazer cinema no Ceará. Estreando na direção de longas metragem em 2004 com Sunland Heat, foi apenas com o bom Cine Holliúdy (2013) que ele achou sua assinatura: levar às telas a comédia pastelão cearense inspirada na linguagem regional e no humor caricata cearense. O filme de 2013 levou o nome de Halder e seu estilo de cinema a uma excelente bilheteria e a grande repercussão a nível nacional, sendo visado pela Globo Filmes e que rendeu uma série no próprio canal. Após o sucesso, Gomes aposta na formula outras vezes, com Shaolin dos Sertões (2016), Os Parças (2017) e a continuação Cine Holliúdy 2: a chibata sideral (2019). Em todos esses filmes, as marcas da caricatura do humor regionalista estão presentes. Isso não é diferente em Bem-Vindo a Quixeramobim (2022).
Entendo e gosto da aposta do diretor – que é co-roteirista da obra – em suas marcas. Não condeno o fato de se preservar uma formula que venda e que tenha como objetividade o sucesso mercadológico. Inclusive, o sucesso de seus filmes está em sua visão de levar para as telas as marcas da cearensidade na linguagem da fala, nas relações entre as personagens bem típicas do povo cearense e nas expressões que marcam sujeitos quase arquetípicos da própria região. A caricatura “cearensês” em seus filmes exporta para o Brasil aquilo que parece ser o orgulho do diretor, e isso é um ponto alto em sua carreira. Mas quando em sua obra, o elemento principal são essas marcas, deixando para traz uma lógica narrativa, coerência de eventos e um roteiro que sustente a história a que ele se propõe contar, essas marcas deixam de fazer sentido. Para além, elas podem servir de armadilha que afetam até mesmo a intenção do diretor em usar o regionalismo como algo que positiva a nossa existência – a cearensidade.
Eu que vos escrevo, como cearense, me incomodei bastante com cenas que retratam nosso povo como pessoas sujas e descuidadas. Na cena em que Aimée toma um pau de arara para seguir viagem, ela encontra personagens que beiram a escatologia – que sempre foi um elemento das comédias pastelão. Mas, construir essas imagens requerem um cuidado, uma vez que quando feitas podem construir o afeto da repulsa, podendo estar direcionado a uma característica de “povo” que o diretor passa a audiência – e isso se torna problemático em um realidade brasileira, em que essas imagens podem reforçar preconceitos em pessoas do sul-sudeste e até mesmo aos nordestinos de classe social mais rica que acreditam na tese de que o pobre é sujo por natureza. Esse cuidado na construção da imagem em prol de cenas hilariantes representa um certo perigo na narrativa. As imagens escatológicas são presentes no cinema na comédia e no horror. Se usado na comédia, aparentemente são usadas como meio caricatural que se destinam a atingir os poderosos. O problema aparece quando é usada para descrever pessoas desprovidas de poder. Essa caricatura escatológica acaba por se tornar uma ação opressora que pode reforçar preconceitos que os próprios poderosos tem contra populações de classes inferiores. E para se produzir obras com essas características estéticas é preciso ter cuidado.
Porém, os problemas do filme não ficam apenas no mal uso de imagens escatológicas, mas no exagero de termos obscenos como marca regional. É claro que sempre soltamos um “rapariga”, um “priquito”, um “ai deeento”, mas o uso exagerado e abusivamente volumoso no filme acabam por cansar o espectador e esvaziar as próprias personagens. Seria mais plausível os roteiristas e diretores recalcularem essas falas, dosando seus usos, uma vez que em certo momento – que não demora muito – acabamos por cansar e até mesmo perder o carisma das personagens. Este problema de roteiro não fica apenas nas falas das personagens, mas também na estrutura dramática, em que o filme coloca problemas em cima de problemas e praticamente não resolve nada, deixando para um deus ex-machina resolver um dos problemas principais da forma mais pobre e inverossimil possível. Isso indica que a preocupação maior dos produtores não era construir uma obras que nos envolva com a história e que dirija nossas sensações aventurescas em uma comédia, mas sim, tentar fazer você rir de qualquer coisa pelo simples fato de ser algo próximo ao exótico – o que pode, mais uma vez, subverter a boa intenção do diretor que, em vez de funcionar como um elemento que positiva nossas marcas regionais, acaba por no jogar na sarjeta do preconceito, uma vez que o exótico é o selvagem que desperta curiosidade para os tais civilizados. Isso sim, me preocupa.
Apesar de tudo, vale salientar a boa estreia de Max Patterson no cinema. O ator que apareceu para o país como influencer, mas que tem formação em artes cênicas, tem uma interpretação muito segura e bastante carismática de Eri. Sua química com a personagem de Monique Alfrandique (Aimée) e com a também excelente Chandelly Braz (Shirlleyany) dão aspectos positivos ao filme. Já os parceiros antigos do diretor como Edimilson Filho entregam mais do mesmo dos personagens já interpretados. Por causa desse elenco, acredito que o filme possa ter um bom retorno em bilheterias.
Desta forma, ainda torço pela carreira e pelas boas histórias sobre nós, cearenses, que Halder Gomes tem a contar e tem a levar para o Brasil. Mas preciso alertar que não basta boas intenções para vender bem as marcas regionais do povo cearense. É preciso ter muito cuidado no método e na estética de como você vai fazer isso. Mesmo que isso seja feito em prol de vender para um mercado que quer pagar por isso. Este mesmo mercado pode perceber os excessos – que são a armadilha do caricaturismo – e as faltas na pobreza argumentativa das narrativas.