Marilyn Monroe foi uma personagem. Uma criação da indústria do espetáculo para ser uma estrela. Radiante, encantadora, sensual e talentosa. Essas eram as características que essa indústria comandada por homens de negócios de Hollywood vendiam para sua sociedade. Sim! Sociedade, não apenas espectadores. Marilyn Monroe sempre foi um projeto de ícone para os anos 1950 e 1960. Assim como Elvis, essa personagem encarnaria em uma jovem de história complexa, cheia de sonhos e vontades que foram afogadas pelo trabalho carnal que era vender sua sexualidade ao mundo do entretenimento. Esse simples e rápido parágrafo já aponta a superfície de um oceano complexo, no qual para se narrar uma história é necessário um mergulho profundo e corajoso. Mas acima de tudo, RESPEITOSO.
Falar de Marilyn Monroe – ou Norma Jeane Mortenson – é falar de uma mulher agente de seu tempo, que para além do produto midiático, fora uma vítima de uma sociedade e uma indústria exploradora e aprisionante. Não querendo ser repetitivo, mas essa noção é necessária para evidenciar o respeito ao ícone ao qual queremos falar. Respeito esse que parece não ter sido dado pelo diretor Andrew Dominik. O filme Blonde (2022), produzido pela Netflix, surge a partir da adaptação do polêmico livro de Joyce Carol Oates que se presta a ser uma biografia com mais apostas em teorias sobre a vida de Monroe do que fatos comprovados. Partindo dessa raiz, Dominik cria uma obra sobre um polêmico e poderosíssimo ícone da cultura pop estadunidense que silenciosamente confessa ser mais ficcional do que baseado na vida real da atriz. Obviamente que aqui não quero fechar a objetividade da arte. Porém, quando falamos de alguém tão popular e tão envolta em teorias da conspiração sendo mulher explorada sexualmente por sua época é extremamente necessário ter cuidados, principalmente, cuidados políticos sobre o que se fala e como se fala. Com isso, posso dissertar sobre o meu incômodo por toda a projeção do filme de Dominik.
Não acho que seja impeditivo um homem dirigir filmes de histórias complexas sobre a vida de personagens femininas. Muitos diretores fizeram grandes obras sobre essa temática. Mas não é o caso de Dominik, que ultrapassa fronteiras do aceitável. Sua péssima direção conseguiu a proeza de ofuscar uma interpretação brilhante de Ana de Armas – que está simplesmente incrível. É revoltante ver o trabalho e o respeito que a atriz dá à história de Monroe contrastar com o desrespeito de Dominik por todas as 2 horas e 45 minutos de filme. De Armas cria camadas em sua composição de uma personagem que se inspira na vida de Monroe, por vezes glamourosa, por vezes fragilizada e muitas vezes ligada ao sofrimento de infância que refletem em sua vida adulta. De Armas se aprofunda nos maiores temores e tensões de Monroe, fazendo excelentes transições emotivas da personagem enquanto o diretor se ocupa fazendo com De Armas o mesmo que os homens que cercavam Monroe faziam com ela: explorando obcecadamente o corpo da atriz. Por muitas e muitas e muitas vezes, há cenas desnecessárias de nudez. É completamente incompatível a mensagem de exploração sexual que Marilyn Monroe sofreu e as imagens que exploram exatamente o corpo nu de De Armas – é impressionante que em alguns momentos, se percebe que a câmera tenta colocar em enquadramento forçadamente os seios da atriz sem a menor necessidade, uma vez que tudo o que era preciso já estava sendo passado.
Além disso, para explorar a psicologia da personagem, Dominik aprofunda em elementos imagéticos, de montagem e de jogos de lentes que causam mais confusão do que um discurso sobre a emoção do momento. Sua obra foi dirigida para focar em conceitos psicanalíticos para explicar a vida de Marilyn Monroe. É, no mínimo, um enorme risco contar a história de um ícone invocando temas como sexo, complexo de Electra e doença mental. Talvez, o caminho para manipular esse triângulo ao qual o projeto se propõe colocar como hipótese de sua tese fosse, de fato, a relação entra a cruel sociedade do patriarcado e a indústria do espetáculo. Porém, por toda a andança do filme, o debate é superficial e Dominik prefere se ocupar de cenas de tortura psicológica do que com cenas ou sequencias mais reflexivas que dão oportunidades de aprofundamento temático. Essa manobra é a razão do incômodo afetivo que muitos sentem ao assistir o filme: não há momentos de respiros que nos fazem pensar um pouco sobre o porquê de tanta dor, de tanto sofrimento. As imagens sempre buscam se relacionar com os desejos frustrados de Marilyn e entram em um ciclo de vazio por toda a obra, que em nenhum momento levam o espectador a refletir sobre o problema. Em conclusão, Blonde se torna um espetáculo burlesco de tortura psicológica, o que pode, inclusive, brincar com sentimentos fetichistas de algumas pessoas.
Deveria nos parágrafos seguintes enumerar alguns pontos positivos afora a brilhante interpretação de Ana de Armas, como o trabalho de fotografia e de direção de arte. Eles conseguem expressar os sentimentos da personagem, mas são frustrados, mais uma vez, pela direção que o filme toma. Desta forma, avaliando o desrespeito ao ser humano que deu vida a Marilyn Monroe em nome do próprio ego, do perigo que é o método pelo qual a história é contada invocando conceitos acadêmicos e clínicos que imprimem autoridade da fala, me sinto a vontade de dizer que buscando se impor como uma obra de arte de potência política, o filme acaba sucumbindo devido as superficialidades limitadas de um pretenso pensador.