Outubro de 2018. Por todo o Brasil, fogos de artifício eram disparados as 20 horas e 30 minutos com o anúncio da vitória de Jair Bolsonaro na campanha para presidente da república. Este episódio de festa, para muitos brasileiros foi um testemunho agonizante da chegada de uma nuvem tóxica que mudaria a atmosfera da nossa sociedade – como o foi para este que vos escreve. Não esqueço de estar pasmo, assistindo o anúncio da eleição do presidente Bolsonaro enquanto fogos de artifício explodiam nos céus da praia de Copacabana. Era um réveillon reacionário que acontecia nos céus brasileiros. Naquela noite, esses fogos de artifício me marcaram semioticamente. Era o início de tempos pessimistas para quem desejava um país diverso, democrático, progressista. Não existia espaço para sentimentos de pureza, de sonhos, de utopias. Era momento de distopia, de pesadelo, de rupturas estruturais. Um acontecimento que me poluiu de terror, medo, desesperança. Mas todos esses afetos que relatei foram subjugados na primeira sequencia de abertura do filme Marte Um (2022), de Gabriel Martins.
Abrindo com este testemunho, o início do filme me levou imediatamente àquela noite fatídica. Fogos de artifício, gritos de “Bolsonaro” ecoando me fizeram, mais uma vez, sentir a agonia daquele momento. Mas em contraste, uma música cheia de harmonias infantis que trazia ondas de ingenuidades que acalmavam minhas lembranças e anunciavam o início de um filme que dança entrelaçando sonhos, realidades, possibilidades, transformações e resiliência. Desde então, o filme me capturou. Marte Um contaria uma história de uma família de pessoas pretas de classe média baixa, estruturada, aparentemente feliz, que se manteve resiliente a este período.
Longe de ser um melodrama familiar, o filme de Gabriel Martins explora em muitos núcleos o drama de personagens de uma família que possuem demandas privadas e afetos coletivos em relações de jogos para se manter existindo e convivendo durante o início de um período obscuro na história brasileira. A narrativa se inicia com Deivinho (Cícero Lucas), um jovem negro, magrinho, de óculos que está a admirar a vastidão do céu escuro, onde estrelas brilham enquanto fogos estouram com pessoas comemorando a vitória de Bolsonaro. O garoto sonha em ser um astrofísico e participar da primeira expedição para colonizar Marte. Ao mesmo tempo, Deivinho é um garoto craque de futebol. Joga com pessoas mais velhas, mais altas e mais fortes nos campos do subúrbio de Belo Horizonte. Esse talento faz com que seu pai, o carismático zelador Wellinghton (Carlos Francisco), deposite nele a expectativa de – quem sabe – ser um futuro grande jogador de futebol do seu time de coração, o Cruzeiro. Deivinho se sente pressionado pelo pai, mas tem o companheirismo da irmã, Eunice (Camilla Damião), uma estudante de direito que se apaixona, inicia uma relação homoafetiva e decide sair de casa para morar com a parceira. No centro de tudo isso, está a mãe, a diarista Tércia (Rejane Farias), que depois de um momento traumático após uma pegadinha desenvolve sintomas de ansiedade e pânico, confundindo com uma maldição. Acompanhamos a história que coloca em jogo as relações desses núcleos de difícil direção, mas que no fim entrega uma obra com um teor otimista, diferentemente do clima das eleições daquele ano.
O desafio do roteiro escrito pelo próprio Gabriel Martins era de contar essa história dando riqueza às angustias privadas de cada um, os anseios e as responsabilidades familiares em sobreviver às transformações que o momento e o amadurecimento pediam. De certa forma, o desafio de contar a história da jornada familiar em núcleos e não a partir de um ponto de vista foi bem sucedida. Encontramos personagens carismáticos e com altas doses de brasilidades, regionalidades, política e humor. Ao mesmo tempo, são ricos em profundidade psicológica que dão sofisticação ao drama que vivem. É inegável o talento do realizador na escrita e na direção, que é materializada em uma obra orquestrada de uma forma suave, na qual não opta apenas pelo naturalismo, mas também pelo suspense de que algo está prestes a dar muito errado.
Por vezes, vemos a dosagem certa para o enquadramento que quer dramatizar um momento chave, ou o tempo das cenas que nos preparam para o que vem a seguir, por mais que em alguns casos seja previsível que algo muito ruim vai acontecer. Mesmo com isso, a qualidade do que Martins entrega não é abalada. O diretor sabe exatamente como aproveitar e construir significados com os elementos cinematográficos a seu dispor. Por exemplo: os sons de fogos e explosões que dão início ao filme aparecem como a explosão de uma bomba na pegadinha em que Tércia cai e, assim, cria um gatilho para seus ataques de ansiedade e pânico que a angustiam. Ou mesmo o olhar para o céu como uma forma de procurar ar pura numa atmosfera sufocante e, ao mesmo tempo, sonhar com sonhos impossíveis. Martins busca uma direção que escapa sempre do peso da realidade, mas sem deixar de falar do mais absoluto real possível, e esta é a arte do filme, isto é cinema: tomar para si aspectos neorrealistas, mas dar pitadas do sonhar, que nos faz escapar da dor que é a realidade. Para tal, há um elemento emblemático na obra que é a música de Daniel Simitan, que traz harmonias simples, infantilizadas, mas que nos embebeda de deliciosos acordes que contrastam com as complexas relações familiares que o filme traz em sua escrita, em sua direção de arte e nas impressionantes atuações de seu elenco, que possuem uma química surpreendente, um naturalismo convincente e não poupam nos sotaques regionais que dão características de sua localidade, não ultrapassando nada que poderiam taxa-los de caricata.
Porém, o filme peca na sutileza política. Eu abri esse texto do mesmo modo e com a mesma expectativa que esperei sobre a política no filme. Longe de eu querer ter visto momentos de discursos mais expositivos – isso seria um grande pecado -, mas esperei um melhor aproveitamento ou exploração da política no filme. Entendo que já é complexo dar direção a uma história com diversos núcleos. Porém, se o filme marca com destaque um momento politicamente histórico do país, ele vai gerar expectativas sobre a exploração do tema. Sim, percebo que há metáforas sobre o assunto, como as angustia de Tércia – é marcante a cena em que na mesa de jantar, Tércia comenta sobre seu mal estar com a pegadinha e seus familiares dizem que “foi só uma brincadeira”; esta cena me remeteu imediatamente a bullyings e brincadeiras com piadas racistas e homofóbicas que são tratadas como “brincadeiras”, mas que machucam – e a sensação de que algo está prestes a dar errado por todo o momento. Mas estas sutilezas metafóricas dão a sensação de pouco aproveitamento do tema ou mesmo de explorar apenas o recorte, ignorando totalmente o momento político do país. Essa decisão deve afetar a percepção dos espectadores, ficando a possibilidade de interpretações a partir das figuras de linguagem que permeiam o filme.
Por fim, Marte Um se constitui como uma obra sensível, carinhosamente realizada e marcante por seu poder de resiliência que se transforma em otimismo, exatamente o que nosso momento político pede. Enquanto tudo se transforma e parece estar se perdendo, padecendo perante os piores momentos, é o sonho ingênuo que mantém a união e o amor, mesmo de pessoas próximas que se tornaram bem diferentes. Fica minha recomendação para que assistam no cinema, aberto a todos os afetos que possam nos atravessar.