Ainda Queima/Algo Quema/Still Burning (Bolívia, 2018) de Mauricio Alfredo Ovando
O que fazer quando a História oficial e a versão familiar dos fatos simplesmente não coincidem? O cineasta boliviano Mauricio Alfredo Ovando é neto do general Alfredo Ovando Candia, Presidente da Bolívia entre 65-66 e 69-70. Para a família era um cidadão de bem, que adorava passear com seus filhos e brincar com seus netos. Mas ficou marcado na História como um ditador, assassino, conspirador e violento militar que comandou golpes em seu país. Inclusive, em seu próprio discurso, o general comete gafes, e fala em Golpe por duas vezes, para depois se desculpar e chamar de “Revolução”.
De posse de velhos filmes familiares, gravações caseiras e outros registros institucionais, Mauricio Ovando vai em busca da figura (e de uma sombra gigantesca) de seu avô, costurando e refazendo a sua história ao revelar uma verdade incômoda. A sequência na escada é genial, pois, mirando o espelho em duas ocasiões, podemos ver passado, e o presente. No presente a escada está sendo destruída, como se ele quisesse esquecer o acontecido e construir algo totalmente novo em sua memória (afetiva).
Mergulhar a fundo no passado pessoal e político de sua família, o fazem cutucar muitas feridas, tão claras nos rostos dos entrevistados. Sua avó parece preferir esquecer, e insite em trocar informações dos fatos. Sua mãe não resiste e cai no choro ao relembrar de um acidente de avião nunca explicado. Sua irmã é mais direta, e ao ser perguntada sobre o que sente ao estar dentro daquela casa, responde: “Frio. Mas não o frio do clima, mas uma sensação de frieza emocional e tristeza”.
Mesmo não sendo o Presidente em 1967, o general Alfredo Ovando comandou um dos momentos mais brutais dessa história, o Massacre de San Juan. O general justificou a ação informando nos centros de mineração se desenvolvia um novo movimento de guerrilha semelhante ao de Che Guevara, e por essa razão decidiu eliminar qualquer possibilidade de um novo guerrilheiro na Bolívia. O exército boliviano cercou mineradores (desarmados) que celebravam a Noite de San Juan, e disparou contra eles tiros intensos de rifles, metralhadoras e até explosões de dinamite. O resultado: 20 mortos (incluindo dois bebês) e 72 feridos.
Outro fato histórico para o general Ovando General é que sob suas ordens, Che Chevara foi capturado na Bolívia. Em 8 de outubro de 1967, ele foi localizado e ferido na Quebrada del Yuro (Bolívia) pelo exército boliviano. A viúva de Ovando garante que ele votou contra a morte do revolucionário argentino, mas foi voto vencido na execução clandestina.
Homem de confiança do então Presidente Barrientos, em 27 de abril de 1969, o helicóptero que o presidente pilotava explodiu e caiu perto de Cochabamba. Inicialmente visto como um acidente, foi na verdade revelado como um atentado em meio a um escândalo envolvendo a venda ilegal de armas, e que o chefe do exército, Alfredo Ovando, foi quem supostamente planejou a morte de Barrientos.
Todos esses fatos são cutucados no poderoso e emocional documentário, que não tem medo de abrir feridas. Como você pode perceber, a História boliviana (principalmente sua ditadura militar) é revisitada, mas em uma escala pessoal, e finalizada com um emocional e verdadeiro discurso de neto para avó.
Ainda Queima/Algo Quema/Still Burning (Bolívia, 2018) de Mauricio Alfredo Ovando | Língua: Espanhol | 77 Minutos | Preto & Branco + Colorido | Documentário | Com: Elsa Omiste de Ovando, Maria Teresa Ovando, Alfredo Ovando, Carolina Freudenthal Ovando, Jessica Freudenthal | O filme participa da Mostra Competitiva Latino-Americana do 20º BAFICI.
*O crítico viajou à convite do Buenos Aires International Festival of Independent Cinema – BAFICI, e compõe o Júri FIPRESCI na Mostra Competitiva Latino-Americana.