Animais Noturnos (Nocturnal Animals, 2016) tem início com mulheres obesas dançando em câmera lenta ao longo dos créditos de abertura. Logo descobrimos que as imagens pertencem a uma instalação de arte, cuja curadora as descreve como uma crítica ao “lixo” produzido pela cultura de massa. Sem contexto, a sequência é incômoda e ao mesmo tempo estranhamente bela e hipnótica, levando-me a questionar minha própria inquietação com padrões de beleza e de ridículo. Mas a revelação da motivação por trás da obra acaba reduzindo-a a uma crítica mundana e pretensiosa dentro do universo do filme, embora sirva para revelar aspectos da personalidade de sua criadora.
É uma boa representação da relação de Animais Noturnos – e de seu diretor, o designer de moda e ícone fashion Tom Ford – com seus personagens e trama: Susan (Amy Adams), a dona da galeria, recebe uma encomenda com um livro escrito por seu ex-marido, Edward (Jake Gyllenhal), de quem ela se separou há 20 anos para ter uma vida mais estável com um empresário bem-sucedido. A trama passa a dramatizar o livro de Edward enquanto ele é lido por Susan, intercalando-o com cenas no passado sobre a trajetória do relacionamento entre o ex-casal.
Começando com uma sequência insuportavelmente tensa na qual uma família é perseguida por uma gangue de caipiras numa estrada vazia à noite, a narrativa do livro é dirigida por Tom Ford com uma tensão tão sufocante que acaba até mesmo empalidecendo a trama no “mundo real”. É uma situação pavorosa por natureza, intensificada pela direção realista e marcada por uma ameaça de violência sexual constante que me deixou profundamente abalado. E a trama só vai a lugares ainda mais sombrios a partir daí.
Após ter sua esposa e filha violentadas e assassinadas, o protagonista do livro, Tony Hastings (também interpretado por Gyllenhal), vai atrás de alguma justiça com a ajuda de um xerife interpretado por Michael Shannon. Tendo perdido a família de forma tão cruel, Tony passa a lidar com sentimentos de culpa e indignação e com seu próprio senso de masculinidade perdida.
A narrativa dentro da narrativa não é muito diferente de dezenas de outros filmes policias de vingança, destacada apenas pelo senso de tensão e pelo apuro estético impecável de Tom Ford. Mas em conjunto com a trama de Susan, Animais Noturnos mostra suas verdadeiras preocupações temáticas ao explorar as motivações ocasionalmente sombrias e destrutivas por trás do impulso criativo. Susan passa a enxergar paralelos entre sua vida e a história no livro, até finalmente ter alguma ideia, junto com o espectador, do tipo de pessoa que seu ex-marido se tornou.
Edward acaba recebendo um retrato não muito lisonjeiro, e as pinceladas indiretas que recebemos de sua personalidade revelam um homem amargo que jamais conseguiu lidar com suas perdas pessoais. Mas como nunca chegamos a conhecer o personagem no presente, a única janela que temos é seu livro, e o quanto ele revela de seu caráter é algo que o filme, no fim das contas, deixa em aberto: Edward parece autocentrado o suficiente para enxergar uma perda romântica e familiar nos termos de violência sexual contra mulheres, o que é absurdamente egocêntrico, mas ainda revela algum grau de autoconsciência ao retratar sua busca por vingança como uma jornada destrutiva para todos os envolvidos.
Eu estava bem satisfeito com essa decisão criativa, especialmente por manter a ambiguidade no paralelismo entre as duas narrativas e por não simplificar a natureza da inspiração criativa. Então admito de antemão que não tenho ninguém a culpar além de mim mesmo por ter lido uma entrevista com Tom Ford em que o diretor revela que a lição de seu filme é que “não devemos abandonar as pessoas que amamos”, deixando claro que enxerga Edward como uma vítima do descaso de sua esposa, uma interpretação incrivelmente reducionista e imatura de um término de relacionamento entre dois adultos com aspirações diferentes.
Assim como na já mencionada primeira cena, Animais Noturnos acabou perdendo um pouco de sua força quando descobri a verdadeira intenção de seu autor, que agora não consigo mais dissociar do filme. Como sua protagonista, eu estava bem melhor no escuro, onde pude injetar uma gama de significados que seu criador provavelmente não havia planejado. Certamente foi uma lição injusta para Susan, mas no fim das contas não posso dizer o mesmo de mim.