A Chegada (Arrival, 2016) de Dennis Villeneuve
Por George Pedrosa*
Publicado em 1998, o conto “História da Sua Vida” de Ted Chiang ganhou o Nebula Award e virou um clássico quase instantâneo ao explorar um primeiro contato entre extraterrestres e seres humanos sob o ponto de vista de uma intérprete.
Misturando conceitos de linguística e ciências exatas na construção da sua revelação final, o conto é simultaneamente um retrato delicado e multifacetado de um relacionamento entre mãe e filha e uma reflexão complexa sobre livre arbítrio e determinismo.
Em outras palavras, é o tipo de ficção científica que, com honradas exceções, existe principalmente no campo literário. Correndo o risco de soar como um babaca pedante, a maioria das narrativas cinematográficas que nos acostumamos a chamar de ficção científica são histórias de aventura e suspense que usam elementos cenográficos associados ao sci-fi (naves, robôs, alienígenas) para dar alguma cor à ambientação, mas que não investem em reflexões especulativas sobre como esses conceitos informam nossa percepção sobre o universo e o que significa ser humano.
Adaptado do conto de Chiang, A Chegada tem o mérito de se aproximar bem mais dessa tradição sofisticada da ficção científica. Eu estava ansioso para ver como o estilo de Denis Villeneuve se encaixaria em uma história do gênero, e na maior parte do tempo não me decepcionei: colhendo inspiração de 2001 – Uma Odisseia no Espaço e H. P. Lovecraft para dar novos ângulos ao já tão explorado momento do primeiro contato entre os protagonistas e os alienígenas, o cineasta investe em acordes grandiosos e ritmo lento para transmitir a estranheza sufocante da situação, num tom metódico sustentado por toda a trama.
Em seus dois primeiros atos, o roteiro de Eric Heisserer é relativamente fiel à história original, acrescentando uma subtrama envolvendo as reações das potências globais aos alienígenas que é informada por medos contemporâneos de um novo conflito em escala global. Mas há uma alteração sutil na filosofia central da história que acaba anulando um dos aspectos mais interessantes de “História da Sua Vida”.
No conto de Chiang, os heptapods têm uma percepção simultânea do presente e do futuro, algo que também se manifesta em sua escrita. Diferentemente das linguagens humanas, que são lineares e acompanham nosso processo de pensamento baseado em causa e consequência, a escrita heptapod é teleológica – um logograma representando todos os elementos morfossintáticos de uma frase é escrito de uma vez só, sem distinção entre as partes, de forma que apenas alguém que sabe exatamente o que quer dizer, antes mesmo de escrever, consegue se comunicar nessa escrita.
Na história original, é somente após se tornar fluente nessa linguagem que Louise passa a ter sua percepção do tempo alterada. É uma ideia bizarra cujas consequências não são ignoradas pelo autor: mesmo enxergando o futuro, os heptapods e Louise sentem-se incapazes de alterá-lo, exercendo seu livre arbítrio ao não afetar o destino estabelecido no espaço-tempo (uma percepção que parece inspirada pelo Dr. Manhattan de Watchmen). Louise sabe que sua futura filha morrerá em um acidente de escalada, mas ainda assim não evitará a tragédia, numa escolha que é retratada com simpatia e respeito pela narrativa.
Em A Chegada, essa habilidade é encarada quase como uma espécie de poder paranormal – Louise passa a ter flash-forwards da vida de sua filha imediatamente após ser apresentada ao primeiro logograma, e seu domínio dessa habilidade é fundamental na resolução do conflito entre as nações e os heptapods no terceiro ato. Mais sintomático é o fato de que, no filme, a filha de Louise morre de câncer – uma fatalidade que não poderia ser evitada. Sua escolha, no fim das contas, é decidir entre ter ou não a filha, um conflito bem mais sentimental e convencional do que a moralidade alienígena do conto.
É claro que, em grande parte, essas diferenças se devem às características inerentes de cada mídia: uma obra literária pode ser mais descritiva e discutir a fundo seus temas principais, e boa parte do atrativo de “A História da Sua Vida” se deve ao didatismo com que Chiang utiliza conceitos de Física e Matemática para esclarecer a visão de mundo dos heptapods – em certo momento, por exemplo, descobrimos que nossa matemática básica é considerada avançada pelos alienígenas, enquanto o cálculo de variações (horror dos estudantes de Exatas) é visto como fundamental por eles.
Um filme dificilmente poderia traduzir esse tipo de narrativa sem ser dominado por monólogos descritivos, e é compreensível que os realizadores de A Chegada tenham optado por centrar seu terceiro ato em uma tradicional corrida contra o tempo para salvar o planeta.
De várias outras formas, A Chegada é uma ficção científica bem mais ambiciosa e complexa do que o habitual, protagonizada por cientistas de verdade – que resolvem problemas se debruçando sobre teorias e pesquisas de campo – e que utiliza os heptapods e sua linguagem a serviço de uma mensagem política sobre barreiras de comunicação que é particularmente relevante neste momento.
Ainda assim, é difícil olhar para “História da Sua Vida”, uma narrativa que leva suas ideias mirabolantes até as últimas consequências e que resiste a qualquer impulso de antropomorfizar seus alienígenas e sua visão de mundo, e não lamentar a oportunidade perdida.
Fica a torcida para que futuras produções do gênero possam abandonar um pouco a Terra e ser tão especulativas e ousadas quanto seus pares literários.
*George Pedrosa é jornalista, e membro da Associação de Cearense de Críticos de Cinema (ACECCINE).