Por George Pedrosa*
Em certo momento de Batman Vs. Superman – A Origem da Justiça (Batman v. Superman: Dawn of Justice, 2016), quando o pai adotivo de Clark Kent lhe conta uma história sobre como ele salvou a fazenda da família de uma inundação, somente para causar o afogamento dos cavalos de uma fazenda vizinha, fui tomado por uma epifania que me ajudou a entender o incômodo que senti desde o começo da projeção.
Não é que o filme seja ruim (e ele é terrível, mas minhas expectativas já estavam bem baixas). Nem que ele teve origem como uma sequência do Superman, mas não demonstra nada além de desprezo pelo personagem e por seu universo de coadjuvantes (O Homem de Aço já havia preparado esse terreno).
É que Batman Vs. Superman é um filme que odeia o próprio conceito de heroísmo, generosidade e altruísmo. É uma história cujo subtexto, expresso em letras garrafais em várias cenas, é que fazer o bem, colocar os interesses de outras pessoas acima do seu, é algo inerentemente danoso, que piora o mundo. É o tipo de filme que poderia ter sido produzido pelo próprio Lex Luthor, como uma tentativa de minar a credibilidade da Liga da Justiça.
E é a fundação que a Warner/DC escolheu para seu universo de filmes de super-heróis.
Uau.
É curioso como o universo DC no Cinema trilha um caminho parecido com o que aconteceu nos quadrinhos nos anos 90. Ao invés de investir em versões icônicas e coloridas dos personagens, como a Marvel, as escolhas da Warner remetem ao período grim and gritty, quando as críticas desconstrutivistas das obras seminais de Alan Moore e Frank Miller passaram a ser vistas como as únicas abordagens aceitáveis, inspirando uma legião de cópias de baixa qualidade.
Claro, super-heróis não estão acima de olhares críticos ou pessimistas. Pelo contrário, algumas das melhores histórias em quadrinhos partem do pressuposto de que super-heróis no mundo real seriam uma péssima ideia. Mas existem dois problemas fundamentais na aplicação dessa abordagem em BvS. O primeiro é que Zack Snyder e os roteiristas David Goyer e Chris Terrio não demonstram ter a densidade necessária para explorar as ramificações dessa premissa.
Em Watchmen, o desequilíbrio social e político provocado pela existência de super-heróis está amarrado a questões de poder e responsabilidade. Super-heróis que operam a serviço do governo abrem margem para que seus poderes sejam abusados por figuras de autoridade. Por outro lado, quando agem de forma autônoma, sem amarras institucionais, tornam-se superpotências por si mesmos, que não respondem a ninguém além da própria consciência. É uma clássica sinuca de bico que também é explorada em Cavaleiro das Trevas, com Batman e Superman como lados opostos dessa equação.
Os realizadores de BvS reduzem esse dilema a uma estranha e simplista filosofia que defende que tentar fazer o bem na verdade só piora a situação de todos¹. E não em termos paternalistas, intervencionistas, mas com algo tão elementar quanto resgatar uma pessoa de um edifício em chamas, o que é bastante desconcertante. As cenas do Superman salvando pessoas são dirigidas com um tom sinistro, arrepiante, seu caráter inspirador esvaziado de significado.
O segundo problema é que Watchmen e Cavaleiro das Trevas são histórias sobre finais, não inícios. O primeiro é a história que se propõe a levar os super-heróis à sua conclusão natural, funcionando como o crepúsculo de um gênero. E o segundo é, de modo bem literal, a última história do Batman, o desfecho de sua trajetória e de seus conflitos internos.
O filme BvS, por outro lado, se propõe a ser a base inicial de um universo de super-heróis. E já começa desmontando seus protagonistas, retratados como machos alfa babacas, irresponsáveis e amorais. Enquanto Batman é introduzido torturando um prisioneiro, Superman surge esmagando um terrorista para salvar sua esposa.
A imagem do Superman sentado em uma nuvem, calmo e seguro, foi a inspiração da HQ Grandes Astros: Superman de Grant Morrison, uma das melhores introduções ao personagem. A ideia é que um ser verdadeiramente indestrutível seria a epítome da tranquilidade, daquela charmosa confiança projetada por Christopher Reeve, que vestia o uniforme (com cueca por cima da calça) com uma dignidade inédita desde então, e que flutuava pelos céus com graciosidade, sorrindo para a audiência. Você confiaria sua vida nas mãos desse cara.
O Superman de Snyder é o oposto disso: ele é um motor de destruição que causa tremores por onde passa e não parece ter muito controle sobre suas habilidades. Este Superman faz ameaças, caretas de desprezo e age como um bully. Seu único momento para brilhar, num discurso perante o Senado americano, é frustrado por mais violência (envolvendo, bizarramente, um pote de mijo de Lex Luthor).
O casal Kent – que sempre representou tudo que a humanidade tem de melhor e que fornece a Clark seu senso moral – aparece no filme apenas para lhe aconselhar a não se importar com outras pessoas, para lhe dizer que ele “não deve nada” ao mundo.
É um assassinato de reputação completo: esse filme poderia muito bem se chamar Zack Snyder v. Superman.
Com um Superman tão odiável, a tendência natural seria torcer para o Batman, não fosse o personagem retratado como um psicopata violento que não tem disposição para diálogo, segue rigorosamente a doutrina do 1% de Dick Cheney e manda criminosos marcados por tortura para serem executados em prisões².
O tão esperado confronto entre os dois personagens tem toda a fisicalidade e peso emocional de uma briga de jardim de infância, sendo motivado mais por ego masculino do que qualquer outra coisa. No fim das contas, cabe à Mulher-Maravilha de Gal Gadot trazer algum resquício de heroísmo para o filme.³
Snyder, aparentemente, construiu essa sequência como uma resposta às críticas ao filme anterior, algo que levou a uma mudança de curso drástica. O Homem de Aço, com todos os seus problemas, ainda terminava com uma nota de esperança, posicionando Clark Kent em seu clássico status quo de repórter do Planeta Diário, com aventuras para viver e pessoas para salvar. Sim, ele deixou metade de Metrópolis ser destruída e não inspirou ninguém, mas o filme não parecia perceber isso.
No entanto, na tentativa de incorporar as críticas à destruição gratuita do confronto com Zod, Snyder fez um filme que só demonstra desprezo pelo personagem e por seu papel no mundo, e que jamais esquece ou perdoa a negligência que ele cometeu anos atrás – quando o correto seria que aquela negligência nunca tivesse ocorrido.
Tive muita sorte de ter tido as melhores apresentações possíveis para esses personagens durante a infância: os desenhos animados de Bruce Timm. Antes mesmo de virar um leitor de quadrinhos, foi através daquelas versões absolutamente icônicas que conheci esse mundo de cores fortes e verdades simples, mas essenciais: compaixão, bravura, honestidade.
É triste perceber que uma geração inteira vai ser apresentada a esses heróis através de versões cinematográficas odiosas e pouco marcantes, e embora eu quisesse muito dizer que os responsáveis pelo universo DC no Cinema podem aprender com os erros e introduzir uma Liga da Justiça digna, algo me diz que todas as lições erradas serão incorporadas no próximo filme.
Parece claro que Snyder e seus roteiristas só leram as grandes obras desconstrutivistas, mais conhecidas entre o grande público, mas não têm muita compreensão de suas bases originárias, dos clássicos infanto-juvenis que implantaram os personagens no imaginário popular. Como resultado, eles só conseguem entender essas obras em termos superficiais, apropriando-se de sua iconografia sem entender o subtexto que existe além das imagens e diálogos marcantes.
Em resumo, Batman Vs. Superman é apenas mais um capítulo de uma série de filmes sobre como Zack Snyder leu Watchmen e não entendeu nada.
Notas do autor:
¹Se isso não é claro o suficiente no filme, Zack Snyder fez questão de elucidar sua filosofia em uma entrevista de divulgação:
“Quando encontramos [o Superman], ele esteve lidando com o cotidiano de ser um super-herói, mas há uma mudança de paradigma ocorrendo, em que as consequências acidentais desses salvamentos começam a ocorrer.
Tipo, se você tenta tirar um gato de uma árvore, de repente você não pode tocar em nada ou os arboristas vão dizer, ‘ele danificou o caule das árvores quando tentou tirar o gato.’ Ou, ‘o gato não foi castrado, agora há milhares de gatos.’ Não tem mais como o Superman vencer.”
²Por que prisioneiros executariam outros colegas prisioneiros derrotados pelo seu inimigo? É uma das inúmeras perguntas que o filme deixa no ar.
³Mas não se engane: o único motivo dessa Mulher-Maravilha ter deixado uma impressão tão boa é que o filme não se aprofunda na personagem, deixando seu passado em nossa imaginação.
*George Pedrosa é jornalista, e membro da Associação de Cearense de Críticos de Cinema (ACECCINE).