Donato é um salva-vidas (Wagner Moura) que trabalha numa praia em Fortaleza (CE). Depois de passar por um trauma emocional, conhece um motoqueiro alemão, Konrad (Clemens Schick), e parte em busca de uma nova vida na Alemanha. Oito anos depois, seu irmão Aírton (Jesuíta Barbosa), que o tinha como ícone, parte em busca de respostas. Essa é a sinopse de Praia do Futuro (Praia do Futuro, 2014), novo filme de Karim Ainouz. Cineasta de imensa capacidade em tecer narrativas emotivas com resultados afetivamente avassaladores, demonstra mais uma vez sua habilidade em costurar histórias sensíveis com os temas de abandono e um novo começo.
E assim, em se tratando de um filme deste cineasta cearense, diretor e roteirista de belas obras como O Céu de Suely (2006), Madame Satã (2002) e que assina os roteiros de fitas sensacionais como Cidade Baixa (2005) e Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), sua história pode ser lida de maneira muito mais ampla. Vamos lá.
Donato é um salva-vidas da Praia do Futuro, em Fortaleza. Mas os sentimentos e as situações que o cercam são completamente divergentes. Ele salva todo mundo, exceto à ele mesmo. Trabalha na Praia do Futuro, mais não vê ali nenhuma perspectiva. “Não dá para construir nada na Praia do Futuro, o salitre destrói tudo” diz Donato, mas com um significado muito maior em sua vida.
Aos olhos do irmão, Donato é um super-herói, o “Aquaman” , mas sua condição em nada equivale a um ser poderoso ou uma verdadeira “Fortaleza” (onde mora). Por dentro é inadequado, inquieto e se sente constantemente solitário. E tanto o roteiro (de Karim Ainouz e Felipe Bragança) quanto a direção de Ainouz convergem ao transbordar de sensibilidade e deixar seu protagonista afogado no vazio de si mesmo. Quando perde seu primeiro banhista para as águas do mar cearense, o “Aquaman” acaba morrendo por dentro. E, ao surgir uma atração sexual, decide recomeçar em outro país, que na verdade é um outro mundo para ele.
Três atos
Dividido em três atos (“O abraço do afogado”; “Um herói partido ao meio”; “Um fantasma que fala alemão”), Praia do Futuro mostra seus nuances em várias de suas sequências, que aparentemente são simples, mas que vão além do do que se vê quando percebidas dentro de sua trama. A câmera de Ainouz passeia por lugares amplos, para denotar a solidão de seu protagonista, e apresenta suas imagens repleta de muitos outros sentimentos e significados.
Imagens significativas
Entre as sequências, podemos ver Donato sozinho no posto dos bombeiros, e ao fundo uma hélice parada representando a morte. Quando chegamos ao quarto de Konrad, em Fortaleza, tudo está bagunçado, como sua própria vida. Os gritos de libertação de Konrad e Donato ecoam em meio à brutalidade do encontro entre o mar e as pedras, um renascimento surge no mar, como uma espécie de batismo. Já em Berlim, cenas tórridas. A entrega do casal em clima de romance são as “férias”, numa situação que pode ser temporária.
Em outro momento, Donato olha para uma quadra cheio de meninos em um colégio alemão, que remete imediatamente a lembrança/saudade do irmão menor, enquanto o avião no céu denota a distância aplicada. O brasileiro se distancia do alemão ao deixá-lo sozinho, briga enquanto cai a neve (tempo ruim), e por fim se isola no teto. E quando existe uma indefinição de Donato na fria cidade alemã, há uma pequena fuga para noite, resultando em diálogos incompreensíveis entre o brasileiro e uma alemã (pois cada um fala na sua língua, desinteressados na tradução alheia), que encerra brilhantemente com a frase: “Ouvi dizer que no Brasil todo mundo é feliz”. Quanta inocência. Em outro instante, mais uma sutileza da obra, ao mostrar dentro de um trem, onde existe uma tomada de decisão, que não será apenas uma definição de descer ou não do trem, mas a de continuar ou não naquela linha/relação.
Passagem de tempo
A passagem de tempo é suave e estampada no bigode de Konrad, no novo visual de Donato e, claro, por fim no reaparecimento de Aírton, antes uma criança, e oito anos depois na pele do talentoso Jesuíta Barbosa. O reencontro é doído, refletido numa dramática cena entre o elevador e um corredor. Para ele, seu herói morreu e se transformou num covarde em fuga.
Como é uma fita de Karim Ainouz, as cenas de dança são obrigatórias e aqui temos pelos menos três. Em pontos diferentes, Wagner Moura e Jesuíta Barbosa se esbaldam na pista da boate, além da dança do casal Schick-Moura em Berlim. Moura, por sinal, está magnético e constrói a personalidade do protagonista com um mundo de sentimentos que não cabem em palavras, mas ações. Donato é físico, e ele se comunica com suas ações: nadando, fazendo sexo e dançando. Ele não sabe o que responder. E precisa? Simplesmente existem perguntas que não têm respostas e o silêncio se faz presente.
Romance homossexual
Uma troca de olhares, um corte para um sexo casual. Um romance ao som do vinil, uma noite de esbórnia numa boate. Uma decisão de assumir um amor entre duas pessoas. Você, caro leitor, percebeu em algum momento no texto uma menção a um romance homossexual? A resposta é não, exatamente porque o foco do filme não é exatamente sobre isso, mas sobre a busca de si mesmo, qualquer que seja o destino/pessoa. Portanto, o drama flui de forma natural, sem nenhum tipo de preconceito.
Para os personagens Konrad, Donato e Aírton, o local não poderia ser melhor: um mar sem água, frio, cinzento, nublado e com uma bruma de incertezas. Lá as pessoas não morrem, mas voltam para casa, cheios de medo e coragem, sentimentos tão antagônicos quanto complementares.
Drama poético
Karim Ainouz mantém o espectador encantado com seu olhar delicado sobre seus personagens e suas perspectivas, que incluem abandono e um novo começo, que deságua na fuga de um lugar à procura de si mesmo. Sua constante busca por adequação ao mundo e tranquilidade diária é uma busca constante feita de imagens e diálogos poéticos.
Drama sobre as escolhas da vida e longe ser um filme raso, não deve ser reduzido a uma fita de romance gay e, como observado antes, pode ser absorvido com uma leitura mais ampla. Indicado ao Urso de Ouro em Berlim, Praia do Futuro (2014) reflete o seu autor ao apresentar sentimentos antagônicos, porém cinematograficamente reconfortantes, de resultado poético e que deixa seus personagens viverem para além da tela de cinema.