Cine Ceará para mim sempre foi um festival a qual muito tenho afeto. Um dos responsáveis pela minha formação cinematográfica até. E sua 25ª edição trouxe componentes que o tornaram inesquecível.
Seu retorno ao Cine São Luiz (agora dito cineteatro) por si só, já é um ganho considerável.
Outro ponto a se destacar no jubileu de prata do festival, é sua seleção de filmes em competição. Mesmo apesar da ausência de última hora do novo filme de Anna Muylaert, “Que Horas Ela Volta?”, a lista contemplava algo entre o interessante, novidades e obras premiadas.
Dentre as nove obras, seis me agradaram bem – uns mais outros menos. Duas nem tanto, e uma, quase nada. No balanço, excelente uma leva. O 25º Cine Ceará acertou em ousar na seleção de obras fortes e de narrativas não convencionais (em sua maioria). Após a deliberação, o prêmio da crítica (Abraccine), ficou assim:
Melhor filme: “O Clube”, de Pablo Larraín, pela narrativa rigorosa com que reflete sobre questões complexas de uma determinada personalidade humana e social, construindo com habilidade um conflito plural de maneira sóbria e contribuição soberba do elenco.
Menção honrosa: “Crumbs”, de Miguel Llansó, pela capacidade de dar conta com frescor e humor, sem perder de vista um contexto crítico, em registro simultâneo de ficção-científica e fábula.
Melhor curta-metragem: “O Quintal” de André Novais de Oliveira, pela criatividade com que mescla gêneros, ao mesmo tempo em que aponta para questões contemporâneas da sociedade brasileira a partir de um núcleo pessoal.
Confira o dia a dia do festival, com as resenhas dos longas em competição:
Dia #1: O Clube (El Club, Chile, 2015) de Pablo Larraín. Sabe o que acontecem com padres e freiras envolvidos em casos de abusos, pedofilia, enfim, afastados sacerdócio? No Chile eles são os “sócios” do tal clube, uma casa que os abriga, em forma de inferno na terra. Entre conflitos pessoais e o dia a dia da pequena cidade, há muito mais para se sentir do que ver, e assim somos tragados para o desconforto social, e até atestando que a humanidade não deu certo. O drama é tingido de cores frias e de sentimentos fortes, que se distribuem entre repulsa, medo, angústia e dor/peso na consciência. Indicado ao Urso de Ouro em Berlim, venceu o Grande Prêmio do Júri, levando um Urso de Prata para Pablo Larraín. No Cine Ceará venceu como melhor longa-metragem, roteiro, ator – o prêmio foi concedido para todo o elenco masculino e prêmio da crítica (Abraccine). 9/10
Dia #2: Loreak (Loreak, Espanha, 2014) de Jon Garaño e Jose Mari Goenaga. Drama interessante que parte de um fato inusitado: e se você recebesse um buquê de rosas por semana, sem saber de quem? Ane (Nagore Aranburu) é uma mulher em crise, descontente com o marido. Um dia, ela recebe flores em sua casa, sem conhecer o autor do gesto. Semanalmente receber ramalhetes, nutrindo um afeto inesperado pelo correspondente anônimo. Contudo, uma tragédia envolvendo um colega de trabalho transforma um ato de carinho em ato reverso. No Cine Ceará venceu o prêmio de melhor atriz (Itziar Ituño). 7/10
Dia #2: Jauja (Jauja, Argentina/Dinamarca/França/México/EUA/México/Alemanha/Brasil/Holanda, 2015) de Lisandro Alonso. Reza a lenda, Jauja é uma terra mitológica, abundante de felicidade. Impossível de ser encontrado num mapa, é um lugar sem destino certo, de onde ninguém retorna. Ir até lá é uma decisão difícil, pois se garante a plena satisfação, contudo é um abandono inteiro de sua vida. Isso é a única informação que abre o longa, mas também o decifra. Ir para Jauja, no caso assistí-lo, é um ato de entrega, sem dúvida. Para a satisfação plena, passa longe dessa viagem perdida, que fica algo entre uma alucinação e um sonho sem fim. É como se estívessemos rumo ao fim do mundo, sem amarras, onde a paisagem vira protagonista e Viggo Mortensen vira paisagem, só serva para chamar atenção que o drama existe. O longa fez parte da seleção Un Certain Regard em Cannes, e levou o Prêmio da Crítica – Fipresci. No Cine Ceará venceu o prêmio de melhor direção (Lisandro Alonso). 6/10
Dia #3: A Obra do Século (La Obra Del Siglo, Cuba/Argentina/Suíça/Alemanha, 2015) de Carlos Quintela. A história por si só, é curioso. Uma cidade em Cuba, batizada apropriadamente de ‘Cidade Eletronuclear’, foi construída e projetada para viver à sombra de uma Usina Nuclear, a ser construída em parceria com a então União Soviética. Entrecortado por telejornais e comerciais da época, com um P&B brutal dos dia de hoje, que nos revelam uma cidade fantasma, o filme é um drama familiar. Sem nunca conseguir decolar – como sua própria usina –, o longa fica entre uma boa ideia em seu ponto de partida, mas não tão bem executada, e com atuações sofríveis. Cine Ceará o premiou como melhor montagem e trilha sonora. 6/10
Dia #3: Real Beleza (Idem, Brasil, 2015) de Jorge Furtado. Autor de personagens humanos, Jorge Furtado apresenta a história de João (Vladimir Brichta), um fotógrafo decadente, procurando uma nova modelo para relançar a sua carreira. No sul do Brasil fotografa dezenas de adolescentes e se encanta com a beleza de Maria (Vitória Strada). Em busca da autorização para a jovem, acaba se envolvendo com a mãe da garota (Adriana Esteves). Mas ainda tem de enfrentar a oposição do pai (Francisco Cuoco), um senhor com problemas de saúde. Exceto por Vitória Strada, bela e só, o trio (Brichta, Esteves e Cuoco) é afiado, o drama é uma belezinha, tem seus momentos, mas nunca atinge o nível de “real”. Ah, e tem um belo nu frontal de Adriana Esteves. 7/10
Dia #4: NN (NN, Peru, 2014) de Héctor Galvez. Fidel (Paul Vega) é líder da equipe responsável por exumar restos mortais, em uma cidade do Peru. Após encontrar um corpo sem dono e uma senhora em busca dos restos mortais do seu marido desaparecido, o médico é colocado em um conflito particular. O passado ressurge em perguntas sem respostas, e o filme peruano vai, de forma convencional, mas extremamente satisfatória, investindo na tentativa de uma satisfação pessoal e humana. 7/10
Dia #4: Cordilheiras do Mar – A Fúria do Fogo Bárbaro (Idem, Brasil, 2015) de Geneton Moraes Neto. Como diria Glauber Rocha, personagem central analisado no documentário, “a poesia e a política, são demais para um homem só”. E são mesmo. Mas pode ficar pior, quando é posto em análise um olhar já formatado e sem espaço para escolhas políticas, culturais ou de qualquer natureza. O drama evoca o espírito do cineasta baiano, que fazia questão de não se ater à esquerda ou direita, branco ou preto, certo ou errado, mas escolhe apenas o que lhe convém a formatar uma visão de lado só dos pensamentos – principalmente políticos – de Gláuber Rocha. Há depoimentos interessantes, hilários (como o de Jaguar) e outras revelações, mas com uma estética e narrativa pobre, que se resume a planos fechados e cabeças falando, sempre em P&B. Cláudio Jaborandy se entrega aos berros à experiência e só. No Cine Ceará recebeu o Prêmio Especial do Júri. 5/10
Dia #5: Cavalo Dinheiro (Cavalo Dinheiro, Portugal, 2015) de Pedro Costa. Vença o ritmo lento e serás recompensado com um belo grito dos excluídos. Humano e de estética digna de uma pintura renascentista, conta a história de Ventura (ou seria um delírio?), um paciente de um hospital subterrâneo em Portugal. Suas histórias são doídas, suas memórias produzem tremor tanto nas almas dos espectadores quanto as mãos do protagonista. Como diz seu realizador, “é um filme que se passa ‘num presente eterno’”. Venceu três prêmios Mucuripe no Cine Ceará: fotografia, direção de arte e som. 8/10
Dia #6: Crumbs (Crumbs, Espanha/Etiópia, 2015) de Miguel Llansó. Diante da mistura de pesadelos e medos de um cenário pós-apocalíptico, Gagano (Daniel Tadesse) é um estranho catador de sucata, colhendo as migalhas da civilização decadente. No céu, uma nave ronda o local e passa a demonstrar sinais de atividade. A grande surpresa do festival vem da Etiópia com sotaque espanhol. Papai Noel chegou mais cedo e misturou Michael Jackson com Tartarugas Ninja, sci-fi com fábula, Michael Jordan com boliche, Superman com nazismo e entrega uma deliciosa diversão. 8/10
Vida longa ao festival Ibero-Americano de cinema do Ceará.